Jornal Estado de Minas

Coronavírus cria paradoxo entre oferta e demanda cultural

Guilherme Augusto e Pedro Galvão

(foto: mauro figa/divulgação)

Um dos principais nomes da cena independente do Brasil, a cantora Letícia Novaes está atualmente reclusa em uma fazenda no Rio de Janeiro. Ela lançou o álbum Letrux aos prantos no último dia 13 e, desde então, viu seus planos irem por água abaixo.



A agenda de shows para divulgar o trabalho teria início na próxima semana e foi adiada por tempo indeterminado. "Não faço ideia de como será daqui para a frente, e isso me assusta e me entristece, mas a verdade é essa: não faço ideia. Quero crer em possibilidades e que iremos sair dessa ou vencer, mas será complicado. Até chegar o cosmos, haverá muito caos, infelizmente", avalia.

Aos 38 anos, esse é o segundo trabalho de Letrux como artista solo e o primeiro feito com patrocínio via edital. A turnê, entretanto, seria realizada de forma independente, por meio de uma união de esforços, segundo ela. Sensibilizada pelo momento atual, ela diz não estar preparada para se engajar, como outros artistas, em eventos on-line.

"Lancei um disco e todo um planejamento ruiu. Admiro quem consegue instantaneamente sorrir e seguir. Quando eu estiver pronta ou desejar, farei alguma live. Agora não é o meu interesse, mas absolutamente nada contra quem consegue. Só não é o meu caso. Também não me sinto à vontade em dizer 'comprem minha camisa, meu livro', precisamos respeitar as ordens da Organização Mundial de Saúde (OMS), então não consigo pensar num apoio monetário para o momento", afirma.



A situação preocupante para todos os trabalhadores autônomos tem especificidades para profissionais da música, evidenciadas pelo contexto da pandemia. Diante dos cancelamentos de espetáculos com público _ principal fonte de renda de boa parte deles _ artistas cobram medidas emergenciais das autoridades e lamentam um momento de desvalorização da classe que antecede a escalada do coronavírus no Brasil.

O instrumentista Paulim Sartori revela que teve pelo menos oito datas canceladas e não tem nenhuma apresentação programada até o fim de maio. Integrante da Orquestra Ouro Preto e participante de outros projetos musicais, seus concertos, shows e até apresentações em festas particulares, como casamentos, não acontecerão nos próximos meses. O músico define a situação como calamitosa.

“Não são apenas as apresentações ao vivo, o ambiente dos estúdios de gravação também é contrário às recomendações da OMS. São lugares fechados, onde há contato. Várias instâncias do trabalho musical estão afetadas e, como recebemos por trabalho feito, a perspectiva é de não receber quase nada nos próximos meses”, diz Sartori, lembrando ainda que os valores provenientes de arrecadação por direitos autorais e quantias repassadas por plataformas de streaming são “irrisórios” para muitos.



PALIATIVOS 

As iniciativas paliativas escolhidas por muitos, como shows on-line, também não representam uma solução ampla, segundo o instrumentista. “Muita gente tem feito apresentações e até festivais on-line, mas é mais por uma questão solidária, não é nada que tenha substrato (financeiro). Estamos buscando alternativas e, nesse caso, há o risco de os servidores das plataformas não aguentarem tantas transmissões de shows, ou seja, até essa alternativa pode entrar em colapso”, alerta.

Para ele, o melhor caminho seriam editais e políticas públicas emergenciais para o setor, citando como exemplo o edital recém-anunciado pela Prefeitura de São Paulo, que destinará um total de R$ 10 milhões para viabilizar 8 mil espetáculos musicais, teatrais e literários nas janelas da cidade durante a quarentena.

Paralelamente ao contexto da pandemia do coronavírus, Paulim Sartori aproveita para questionar: “É uma conversa que sempre existiu. A vida que músicos levam é inviável. A pessoa não pode adoecer nunca, nem precisa ser uma pandemia. Ficar de cama, pelo motivo que for, significa uma diminuição de renda muito significativa. Não ter um resguardo é insustentável”.



Um dos compromissos que o músico teria era com o projeto Kriol, dedicado à música cabo-verdiana, apresentado em parceria com a cantora Jhê. Ela esclarece que, nesse caso, o cancelamento foi iniciativa deles mesmos. “Eu não conseguiria convidar ninguém para ir ao concerto sabendo dos riscos de propagação do vírus”, diz. Jhê, que é também contadora de histórias e se apresenta com múltiplos grupos musicais, buscará na internet uma forma de seguir trabalhando.

“Para contação de histórias, encontrei uma alternativa possível: a partir da segunda-feira (23), começarei uma série para a quarentena. Não para ganhar dinheiro, sim para tocar o barco, continuar ativa e movimentar as redes sociais”, diz Jhê. Ela afirma que o ofício de artista é uma “luta diária” no Brasil, independentemente da época.

“Se já costuma ser complicado conseguir espaços para trabalhar, nesse cenário me sinto de mãos, pés e bocas atadas. Parar nossas atividades, sem previsão, é o mesmo que ficar à beira do abismo e da incerteza. Não bastasse a tristeza de viver num país em que a cultura é desvalorizada, ainda que na quarentena o que a maioria da população consome é arte: filmes, séries, etc, ainda precisamos nos preocupar com nossa subsistência”, lamenta a cantora, citando países como a Alemanha, cujo governo federal já prometeu um pacote de assistência à classe artística por conta da pandemia.



MOBILIZAÇÃO 

O cantor e compositor piauiense radicado em Minas Makely Ka diz que “prejuízos todos vão ter, mas buscamos mitigá-los”, lembrando que, assim como os autônomos de outras áreas, muitos músicos não têm 13º ou seguro desemprego, sendo totalmente dependentes do trabalho diário.

Diante da crise causada pela pandemia, ele diz que “esperar uma mudança estrutural neste momento é utopia”, mas que há mobilização, por parte do Fórum da Música, união de profissionais do qual faz parte, de exigir medidas governamentais. Makely destaca que a situação dos artistas se torna particularmente grave por conta por um cenário de ataque à classe, anterior à chegada do vírus no país.

“Há esse pensamento da direita de achar que quem trabalha com arte é vagabundo, sendo que cultura é um direito constitucional, assim como saúde, educação e segurança. É dever do Estado prover condições para realização das atividades e para o acesso a elas. Tudo fica mais complicado quando há essa hostilização. Apesar disso, o que as pessoas farão nesses dias isoladas em casa? Vão ler, ver séries, filmes, ouvir música, shows no streaming. Aí vemos a importância da cultura e quem trabalha com ela precisa ser remunerado”, argumenta Makely.



Com agenda de shows cancelada, bem como outras atividades remuneradas, como gravação de trilhas sonoras, ele também se valerá do streaming para manter contato com o público, que poderá contribuir financeiramente com a apresentação. No entanto, Makely Ka destaca que isso está longe de ser o suficiente. “A internet também precisa ser paga”, diz, e cobra medidas do poder público.

SOBREVIVÊNCIA 

“É um momento de salvar os feridos. Garantir a sobrevivência, o pagamento dos boletos. Não esperamos nada do governo federal. É um governo que ataca sistematicamente os artistas. Então o foco é em questões objetivas. Esperamos do governo de Minas um edital via fundo estadual de cultura ou via Cemig, para atender demanda específica para os próximos meses, nos quais os músicos estarão sem agenda, visando a realização de espetáculos on-line e shows virtuais. Acho que músicos e artistas, de modo geral, passam a exercer função importante para as pessoas não enlouquecerem nesse tempo”, afirma Makely Ka.