Verlaine Freitas*
Especial para o Estado de Minas
“Quem sou eu em meio ao oceano de pessoas do país e do mundo?” “O que representam bilhões de pessoas do planeta para mim, um mero indivíduo?”
Essas perguntas, que nos rondam ocasionalmente como meras fantasias existenciais – sem respostas e sem desdobramentos práticos, meros índices das incertezas quanto ao sentido da existência individual e coletiva em um mundo cada vez mais individualista, repentinamente ganharam uma concretude avassaladora.
A pandemia de COVID-19 nos mostra a densidade urgente, visceral e corpórea do tecido societário, expondo à luz do dia como falácias inadmissíveis os discursos baseados no mero esforço próprio, nas opções individuais, no interesse centrado na maximização do lucro em detrimento do bem-estar coletivo.
De muito pouco adianta a segurança do espaço e dos recursos individuais em um mundo globalizado e permeável a viagens intercontinentais, em cidades que se aglomeram e se adensam vertiginosamente nos transportes públicos, nos cortiços e nas favelas. De pouco adianta ter muito dinheiro para pagar um leito em um hospital, quando todos já estão saturados tratando de milhares de pessoas.
Na proporção exata dessa dramaticidade do entrelaçamento entre indivíduo e sociedade, vemos a imbricação vertiginosa entre economia, sociedade e política, desmentindo o discurso neoliberal (de um Estado mínimo) como um verdadeiro atentado ao nosso corpo coletivo.
As políticas estatais garantindo a suficiente capilaridade do sistema de saúde agora se mostram necessárias e, na verdade, imprescindíveis, mesmo para o mais obtuso dos neoliberais, mesmo para o mais empedernido apologista da meritocracia.
INVISÍVEL
Nesse contexto, o empreendimento privado fica de joelhos esperando, não a mão invisível do mercado, mas a muito tangível mão do Estado e seu poder não apenas financeiro, mas baseado em uma perspectiva macro, capaz de entrelaçar diversos atores em diferentes planos, desde a assistência social, passando pelas instituições políticas, econômicas, judiciárias até o plano internacional. (Veja-se, por exemplo, o posicionamento simétrico da diminuição de juros nos bancos estatais, e a elevação das taxas para empréstimos cobradas pelos bancos privados.)
Vivemos atualmente um chamamento à concretude radical da negatividade do mundo, muito além da experimentada nas figuras dos vilões nos filmes, nas derrotas esportivas e nas notícias de guerras do outro lado do mundo.
Ela deverá forjar uma nova consciência do significado dessa vida “em piloto automático”, com este vaivém constante, seguindo o eterno princípio da maior vantagem para si. Tal como toda interrupção do trânsito com objetos de desejo constrange a uma posição crítica sobre o significado deste vínculo, agora também seremos levados a nos perguntar sobre esta colonização expansiva do mundo, cuja marcha inexorável levou a natureza a nos questionar: “Quais seus limites? Qual a racionalidade social disso tudo? Quais os custos ambientais e de vidas humanas vocês estão dispostos a pagar para manter a ilusão de um individualismo exacerbado?”.
Naturalmente, o aprendizado dessa experiência negativa será muito diverso, pois alguns grupos sociais lucram com esta crise, outros aferram-se a leituras religiosas fundamentalistas baseando-se no conceito de castigo divino, e alguns tenderão a se fechar mais ainda em seu mundo, isolando-se de toda e qualquer responsabilização social.
CRÍTICA
Espero, porém, que a maior parte da sociedade tenha uma visão crítica progressista, cobrando de si e dos outros um comprometimento maior com o bem-estar social, percebendo o quanto a vida em sociedade significa, por si, uma dimensão inexpugnável e inelidível da vida individual no sentido mais próprio do termo.
O isolamento social a que hoje nos vemos forçados pode ser lido como uma metáfora do quanto a negligência para com os serviços públicos de saúde significa o desprezo para com a vida de cada uma e cada um de nós em termos singulares.
Os filósofos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, haviam concebido a destruição avassaladora da Segunda Guerra Mundial como um retorno violento da natureza recalcada, reprimida e mutilada. Tal como, segundo a psicanálise, desejos recalcados retornam sob a forma de sofrimento neurótico, todo o complexo natural pareceu retornar, furioso, nas centenas de bombas despejados sobre as metrópoles.
Agora vemos, mais uma vez, porém de forma menos metafórica, a natureza cobrando um alto preço pelo esquecimento de que somos seres vivos, aliás muito frágeis, muito mais fracos que outros, invisíveis aos nossos olhos, mas muito mais poderosos que nós humanos, demasiadamente humanos.
*Verlaine Freitas é professor da UFMG e pesquisador do CNPq