Há exatamente um ano, em 1º de abril de 2019, Helvécio Ratton começava a filmar seu nono longa-metragem. Em um andar de um edifício comercial na Avenida João Pinheiro que pertenceu à construtora Mendes Jr., a equipe de O lodo rodou as primeiras sequências do filme, inspirado no conto homônimo de Murilo Rubião (1916-1991).
Ali, na Região Central de Belo Horizonte, Eduardo Moreira, intérprete de Manfredo, o protagonista da história, contracenou com Leri Faria, que fazia o papel do seu chefe em uma companhia de seguros. Homem absolutamente comum, Manfredo sofre de depressão. Procura um psiquiatra, Dr. Pink (Renato Parara), que começa a persegui-lo na vida real e também por meio de pesadelos. O médico diz que o lodaçal que Manfredo tem dentro de si tem que ser removido. Para tal, ele deve remexer em seu passado.
Foram só três dias de filmagens. Naquela primeira semana, Faria passou mal, foi parar no hospital e acabou diagnosticado com um tumor cerebral – morreu em 28 de abril, aos 63 anos. Mesmo com esse início turbulento e triste, a produção de O lodo continuou em frente. Faria foi substituído por outro veterano da cena mineira, Mário César Camargo.
Nas semanas seguintes, a produção percorreu vários lugares de Belo Horizonte: a Casa Mac, na Cidade Jardim, virou o consultório do Dr. Pink; o antigo Hotel Itatiaia, no Centro, foi a fachada da companhia de seguros; uma casa prestes a ser demolida no Gutierrez fez as vezes do apartamento de Manfredo. O clima kafkiano da narrativa foi traduzido em corredores estreitos, muitos planos interiores.
Em oito meses, O lodo ficou pronto, tanto que teve sua première (hors-concours) em janeiro passado,na Mostra de Cinema de Tiradentes. Pelo planejamento, o filme deveria chegar aos cinemas em 3 de setembro, com distribuição da Cineart. Mas, como tudo, O lodo foi atropelado pela pandemia do novo coronavírus, como Ratton, de 70 anos, conta na entrevista a seguir.
Como você acha que o audiovisual vai sair desta pandemia?
O setor já vinha sofrendo com outro vírus, o do desprezo à cultura, da negação da arte. Quantos secretários da Cultura nós já tivemos? O audiovisual já estava paralisado; o Fundo Setorial, bloqueado. Então vínhamos sofrendo de forma radical, desde o ano passado, esse sentimento de paralisação do setor. A pandemia veio acentuar ainda mais. Mas, na verdade, ela colocou nosso problema como o menor. Todos os problemas particulares e profissionais ficaram menores diante de uma crise deste tamanho.
Pessoalmente, há uma frustração ao interromper o processo de lançamento de um filme, não?
É óbvio que tem uma frustração grande ao paralisar um processo, pois estávamos criando, propondo coisas nele. Eu, particularmente, estou voltando minhas energias para um roteiro em que estou trabalhando. E estou repensando a atividade. Sinto que as coisas estão mudando muito, e vão mudar ainda mais. Este período de isolamento social que estamos vivendo leva a uma mudança hábitos. A gente já vinha sentindo muito a diminuição de frequência nas salas de cinema e o crescimento do streaming, do vídeo sob demanda. De novo (pós- pandemia) vai ter uma nova acomodação da atividade cinematográfica em todos os pontos, desde a produção até a exibição. Não acho que depois será como antes. Deverá haver uma modificação.
O lodo teve uma exibição durante a Mostra de Cinema de Tiradentes. Por que você quis lançá-lo dessa maneira?
Por dois motivos. Em primeiro lugar, para reforçar a Mostra, no momento em que a gente sentia a retirada de apoio aos festivais. Era um pouco para defender e mostrar a importância que os festivais têm para o cinema. Ao mesmo tempo, O lodo é muito original, um filme diferente de todos que já fiz. Então foi interessante fazer uma sessão preview e ver a reação do público. E foram mais de 700 pessoas na tenda. Foi um ótimo primeiro passo para o filme.
Como você chegou ao universo de Murilo Rubião?
Há alguns anos, a Silvia Rubião, sobrinha do Murilo, nos procurou (a Quimera Filmes, produtora de Ratton) propondo que trabalhássemos na obra dele. Eu já admirava vários contos, mas não conhecia toda a obra. A obra do Rubião tem 33 contos, que ele reescreveu a vida inteira. Mergulhei na obra e trabalhei em um projeto de série, com 15 roteiros, que já estão escritos e aguardando uma boa oportunidade para ser produzidos. A dificuldade de uma série como essa é que cada episódio tem uma mudança de locação e de personagens, o que encarece muito. Uma série se barateia porque personagens e locações se repetem. E no caso do Murilo, cada conto é uma história diferente. Mas acredito que a série tenha viabilidade, espero que O lodo possa nos ajudar nisso.
O que lhe interessou no conto O lodo?
É um conto muito pouco comentado, não é dos mais conhecidos. E o fato de que pouca gente conhece me interessou mais ainda. Ele tem um humor negro muito interessante, que atravessa toda a história. Um psiquiatra que fica perseguindo seu cliente, isso mexe com as fantasias do cliente. E coloca isso no plano do real, fazendo um retorno ao passado (do personagem), me interessou muito.
Manfredo é o primeiro protagonista de Eduardo Moreira no cinema. Ele foi o primeiro nome que você pensou para o papel?
Desde sempre. O Eduardo tinha trabalhado no Batismo de sangue (2006). Gostei muito da forma de ele interpretar no cinema. Sempre vi o Manfredo como o Eduardo. A partir dele, fui desenhando os outros. Foi a primeira vez em que trabalhei só com atores mineiros. Foram leituras com vários atores, fui fazendo a seleção, até escolher o Galpão como o núcleo em que eu poderia trabalhar (além de Moreira, o elenco conta com Inês Peixoto, Paulo André, Fernanda Vianna, Teuda Bara e Antônio Edson). O fato de ser um filme que transita entre o absurdo e o fantástico tinha que ter uma interpretação muito afinada. É tudo muito sutil, pois, para o absurdo funcionar dentro do realismo, tem que ter uma afinação grande de tom.
Entre filmagem e première O lodo levou oito meses, um período bastante curto. Por outro lado, é seu primeiro longa-metragem em seis anos. Como você lida com o tempo do cinema?
Quando as coisas vão bem, o tempo de um filme, entre você ter a ideia e colocá-lo na tela, é de três a quatro anos. Isso mundialmente. Depois de O segredo dos diamantes (2014), fiz várias coisas. Fizemos um núcleo criativo (na Quimera Filmes) que trabalhou em cinco projetos diferentes, como uma série de animação e uma de ficção. Em paralelo, fiz o roteiro de O lodo, em primeiro lugar sozinho e depois com o L. G. Bayão, que tinha trabalhado comigo no filme anterior e hoje está na Globo. Então, se você somar essa distância entre um filme e outro, foi um bom tempo de criação. O lodo foi rápido para fazer, pois ganhamos um edital da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge), mas fomos atropelados, de uma forma brutal, pela paralisação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) na véspera de filmar. Percebemos que o único caminho era seguir em frente pois, se paralisasse, este filme teria se perdido.
Em longas, você já rodou produções infantojuvenis, documentários, drama, romances. Nunca se ateve a um só gênero. O que lhe interessa no cinema?
Sempre a narrativa. Sou apaixonado por construir uma narrativa visual, a questão do gênero não me importa muito. Sempre quero ir para um lugar onde não estive, ter o desafio.