Ele não passa de um garoto, mas tem a firme intenção de matar a própria professora, que o tratou com carinho desde a infância. E tenta. Com uma faca.
O jovem Ahmed, mais recente filme dos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, vencedores da Palma de Ouro de direção no Festival de Cannes no ano passado, tem um protagonista incapaz de conquistar o espectador. Consegue-se, no máximo, não odiá-lo. E isso é um mérito dos diretores, que assinam também o roteiro.
"Ele quer matar, é verdade. Mas ele é também um garoto muito jovem que é vítima de seu imã", comenta Luc, numa entrevista concedida ao Estado de Minas em fevereiro passado, quando o longa estreou no Brasil.
A exemplo de tantos outros títulos estancados pelo estreitíssimo funil do circuito de salas não voltadas à exibição de blockbusters em Belo Horizonte, O jovem Ahmed acabou não sendo lançado na capital mineira. Desde ontem (8), no entanto, o filme está disponível no país inteiro nas plataformas digitais (iTunes, Net Now e Vivo Play).
Ahmed (Idir Ben Addi) foi criado numa família de fé islâmica e vive num bairro de maioria muçulmana. Seu irmão, sua mãe, sua professora e seus amigos assistem – com crescente preocupação e uma sensação de impotência – à transformação do adolescente num fanático religioso.
Os Dardenne contam que estudaram longamente o tema da radicalização islâmica, pelo qual se interessaram depois dos sucessivos ataques terroristas perpetrados em nome da fé religiosa no continente europeu.
Eles escolheram ter um protagonista jovem porque estão convencidos de que, na fase adulta, esse é um caminho sem volta. "Ninguém se desradicaliza", afirma Jean-Pierre. E, se não hovesse a possibilidade de redenção para seu personagem principal, esse não seria um filme dos Dardenne, cuja tradição de um cinema humanista já rendeu os aclamados Rosetta, O filho, A criança, Dois dias, uma noite, entre outros.
AUTORIDADE
Na visão dos dois diretores, O jovem Ahmed é "um filme sobre a prisão", referindo-se à captura do coração e da mente do jovem Ahmed pelo imã, que ele enxerga como uma autoridade incontestável.
É o fato de o religioso classificar a professora do garoto como "apóstata", em razão de suas opiniões religiosas moderadas, que desperta em Ahmed o ódio crescente pela mestra. Daí à sua concordância com a ideia de que os apóstatas devam ser eliminados, é um passo.
Depois de passar do plano à ação, Ahmed sofrerá as consequências de seu ato, mas também terá apoio para rever e redirecionar suas convicções. O que o filme acentua é que a dificuldade para escapar dessa prisão interior ultrapassa largamente o desafio de sobreviver ao encarceramento físico.
A premiada direção dos Dardenne é fiel à sua gramática cinematográfica, na qual o amor e o respeito que têm por seus personagens ganha a forma de uma câmera próxima aos atores e sempre atenta aos detalhes que expõem as emoções – e o pano de fundo social em que elas afloram.
Para isso, os Dardenne dispensam efeitos e se concentram em alcançar de seu elenco uma interpretação de rigor cirúrgico. É também marca da obra dos diretores – incluindo O jovem Ahmed – a atmosfera de suspense dada não por mistérios factuais da trama, mas pela evidência de que os personagens são capazes de ações imprevisíveis e estão permanentemente sujeitos ao imponderável – daí parecerem tão reais.
Às vésperas da estreia do longa no circuito de salas no Brasil, a principal ameaça que o cinema avistava era a concorrência com o streaming. Sobre essa questão, os Dardenne estavam otimistas quanto à capacidade do cinema de resistir, dado o seu papel "social e antropológico", conforme disse Luc.
"O cinema é um fato cultural importante, porque é essencial que as pessoas possam sair de seu círculo restrito de convivência e participar de um ato social, um ato da vida coletiva."
A pandemia do novo coronavírus fez essa frase, dita há menos de dois meses, parecer um passado distante. E O jovem Ahmed foi parar no streaming.
CRESCE OFERTA DE
FILMES PREMIADOS
O cardápio de longas-metragens disponibilizados a partir desta quinta-feira (9) nas plataformas digitais oferece ao menos três opções para deleitar cinéfilos confinados. O oficial e o espião, de Roman Polanski, que estreou no Brasil pouco antes do início da quarentena (em 12 de março), fica disponível tanto para aluguel quanto para a compra, em distintos serviços (Now, Vivo, iTunes, Google Play, YouTube).
Reconstituição do chamado “caso Dreyfus” pela perspectiva do oficial de alta patente das forças armadas francesas que identificou a farsa no julgamento e condenação do capitão judeu (por suposta traição), o novo filme de Polanski é uma superprodução com elenco capitaneado por Jean Dujardin e Louis Garrel.
O filme estreou no Festival de Veneza do ano passado, tornou-se um sucesso de público na França e um motivo de grande controvérsia por liderar as indicações ao César, o prêmio nacional do cinema francês, em meio ao surgimento de novas acusações de estupro contra Polanski. O diretor, hoje com 86 anos, tem uma condenação por haver estuprado uma menina de 13 anos nos EUA, na década de 1970.
Da safra dos premiados no Oscar deste ano chega também ao streaming (Looke) Adoráveis mulheres, a adaptação de Greta Gerwig do romance Mulherzinhas (Louisa May Alcott), com Saoirse Ronan no papel principal.
O reconhecimento no Oscar (seis indicações, mas apenas uma vitória, em figurino) é inferior ao apreço que a crítica tem por esse filme e sua capacidade de fazer uma história situada no período da Guerra Civil norte-americana ecoar fortemente nos dias atuais.
Outro lançamento nas plataformas digitais (Net Now, Vivo Play, Microsoft Stream, Google Play, iTunes e Looke) é o potente longa colombiano Pássaros de verão, em que Ciro Guerra e Cristina Gallego fazem uma abordagem original do narcotráfico em seu país, contando a história da dissolução de uma família indígena depois de se envolver com o plantio e a exportação de maconha, passando por cima de suas tradições e de seus códigos de honra.