Jornal Estado de Minas

Veja por que o filme O poço provoca tanta polêmica nas redes sociais

O catalão Ivan Massagué interpreta o protagonista Goreng, que decide ir para a prisão para acabar de ler Dom Quixote
Um presídio vertical confina duas pessoas em cada um dos mais de 200 andares. A plataforma com comida vai descendo e parando por dois minutos, em cada um deles, para que todos comam. Quanto mais desce, mais os alimentos se tornam escassos, até que os últimos comem pouco ou passam fome. Então, quando não há mais restos para comer, muitas vezes escarrados, a barbárie predomina, inclusive com canibalismo. O protagonista é Goreng (Ivan Massagué), que decide por conta própria ir para tal prisão com o intuito de parar de fumar e concluir a leitura do livro Dom Quixote de La Mancha. Lá, vivencia os horrores do sistema ao ir para o nível 48 ao lado do velho Trimagasi (Zorion Eguileor), onde a comida já é escassa e a luta para não morrer de fome é cruel.



Poucos filmes sobre a degradação humana são tão perturbadores na história do cinema como o espanhol O poço (El hoyo), disponibilizado pela Netflix. O mais repulsivo de todos os tempos, quase unanimidade entre críticos e cinéfilos, é Saló ou 120 dias de Sodoma, lançado em 1975 pelo diretor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), que chegou a ser banido – ainda hoje é – em muitos países. Baseado em histórias do Marquês de Sade (1740-1814), o filme mostra o sequestro de um grupo de adolescentes, levados para uma mansão na Itália, em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Eles são submetidos a torturas sexuais, masoquismo e mutilações por quatro fascistas e quatro prostitutas durante 120 dias. Alguns são obrigados a comer fezes. Pasolini, assassinado antes da estreia do filme, disse que a cena de coprofilia era uma crítica à indústria do fast-food.

Por agora, outro filme pode aspirar ao posto de obra incômoda e repugnante ao tratar da segunda necessidade básica do ser humano depois do oxigênio: a comida para matar a fome. É daqueles de chacoalhar o inconsciente coletivo. O diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, de 46 anos, faz sua estreia em longa-metragem com O poço já jogando – de cara – uma verdade no colo do telespectador: “Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”. Essa é uma das principais mensagens do filme alegórico de Urrutia, um dos mais assistidos do Brasil pelo streaming nas últimas semanas, que está rendendo acalorados debates nas redes sociais.

Não é obra-prima. Pelo contrário, tem baixo orçamento (não revelado), segundo o diretor, e beira o trash e o mau gosto, com erros grosseiros de roteiro, mas desperta inúmeras reflexões políticas, sociais e filosóficas, ainda mais nestes tempos de pandemia e isolamento social, com crítica feroz ao capitalismo, ao consumismo, à exclusão e ao individualismo. Homens devorando homens, em todos os sentidos.


Política

A primeira metáfora óbvia de O poço – parodiando o velho Trimagasi, que sempre diz o óbvio para mostrar a necessidade de cumprir as regras – é a crítica às camadas sociais que vão da riqueza à miséria. Começa mostrando o rigor da qualidade na preparação do luxuoso banquete que vai descer por todos os níveis com mensagem clara: os de cima comem melhor. Há comida bastante para todos, desde que cada um coma apenas o necessário para matar a fome. Se comer demais, vai faltar para os outros, os de baixo.

Crítica ao egoísmo e à falta de solidariedade, tudo a ver com a pandemia que vivemos hoje ao mostrar a corrida desnecessária para estocar produtos. Pelas regras da prisão, quem tirar comida da plataforma do banquete para comer depois é punido com temperatura muito quente ou muito fria. Goreng tem nojo de comer o resto da turma de cima e faz jejum, mas quando a fome aperta... Sem comida não há vida. Mas sem solidariedade também não.

Política

A mensagem está lá. Em momentos de crise (pandemia, por exemplo), de extrema necessidade, as pessoas precisam de um tutor para decidir por elas. Nesse caso, não existe democracia nem bom senso nem diálogo. Vale a lei do mais forte. Então, uma força acima de todos (não Deus, mas o Estado) precisa tomar as rédeas e ditar as regras sobre o que pode ou não pode, sob risco de barbárie.



No início, Goreng mantém bom diálogo com o veterano Trimagasi, mas, com o passar do tempo, a relação azeda, porque fala mais alto o instinto de sobrevivência. Quando o alimento falta, o velho aproveita o sono de Goreng e o amarra para fatiá-lo e comê-lo. É o abandono, a entrega à ganância e à barbárie. O básico (alimento) foi fornecido, agora se virem. Sejam solidários ou se comam.

Filosofia

Há boas reflexões filosóficas em O poço. E são tantas que basta citar algumas. Começando por “o homem é o lobo do homem”. O aforismo original (homo homini lupus), traduzido do latim, vem do dramaturgo romano Plautus (254-184 a.C.), mas ganhou força no mundo moderno com o filosófo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor do clássico Leviatã. Nesse caso, não é preciso metáfora, o homem é um animal que ameaça a sua própria espécie e tem grande capacidade de autofagia e de se destruir. Em suma, o Homo sapiens se aproveita dos mais fracos, seria um instinto de defesa para usurpar o que é dos outros, pondo-se acima deles, o bem-estar individual sobre coletivo.

Em outra frente filosófica, o filme lembra o naturalista e biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882), com a origem das espécies. Sem a razão, somos animais que se adaptam ao meio e prevalece o mais forte. Quando a fome fala mais alto, a civilização vira apenas uma fachada. O corpo é um animal orgânico como outro qualquer – se for preciso, parte para o canibalismo. É comer ou ser comido, ambiente natural nos níveis mais profundos de O poço.



O filme remete também ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), com sua teoria do além-homem – a necessidade de superação do ser humano sobre seus limites – e a morte de Deus. Naquele poço, não existe Deus, apenas humanos brutalizados e sem fé. E não podemos esquecer o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), no clássico A divina comédia, cujo inferno pune os gulosos. “Quanto mais se desce, maior o sofrimento.”

Solidariedade

“O poço quer colocar o espectador na posição que o faça pensar em como se comportaria em certas situações em relação ao que está acontecendo no mundo real. Não julgamos, mas fazemos o questionamento e deixamos para o público a decisão”, disse o diretor Urrutia em entrevista. E completou: “O filme não trata de mudar o mundo, mas de entender e colocar o espectador em vários níveis, ver como ele se comportaria em cada um deles. As pessoas são muito parecidas entre si. É muito importante onde você nasceu – em que país e qual família –, mas somos todos muito parecidos. Dependendo da situação na qual você se encontra, vai pensar e se comportar de maneira diferente. Então, estamos provocando o público a entender os limites de sua própria solidariedade.”

Dom Quixote

Idealismo versus realismo é outra batalha curiosa de O poço. Goreng leva um exemplar de Dom Quixote, clássico de Miguel de Cervantes (1547-1616), para a prisão. Considerado o maior livro da língua espanhola (e, por muitos críticos, da literatura mundial), Dom Quixote é paródia, alegoria, tem forte lastro no filme. Representa o idealismo de Goreng contra o realismo da prisão e de Trimagasi, que não tem livro, mas a faca afiada para comer os outros, se precisar. Como é sabido, o cavaleiro da triste figura confunde fantasia e realidade, vê os inimigos nos grandes moinhos como monstros. Em seus delírios, acredita que pode vencê-los. É burguês e também herói romântico, enquanto seu fiel escudeiro, o realista Sancho Pança, é de classe social baixa. O relacionamento de ambos é o embate entre realidade e fantasia, burguesia e pobreza.



No fim das contas, quem vence a luta? O poço, claro, e isso talvez seja o que mais perturba o leitor e tem gerado controvérsias nas redes sociais, o desfecho dúbio do filme entre fantasia e realidade. O que é real? O que é delírio? Todo espectador comum quer um final feliz, solução para a tragédia. Mas, na realidade humana, nem sempre é possível.

Comilança

A comida em O poço, ou a falta dela, lembra outro filme alegórico. Nesse caso, engraçado e ao mesmo tempo angustiante. A comilança é um clássico italiano de 1973, dirigido por Marco Ferrari e com elenco estelar: Marcello Mastroianni, Phillipe Noiret, Michel Piccoli e Ugo Tognazzi. Quatro homens de meia-idade bem-sucedidos – um comandante de bordo, um executivo de TV, um chef e um juiz – se reúnem na mansão do magistrado com grande quantidade de comida com o objetivo de se banquetear até morrer. Levam prostitutas para lá, mas são surpreendidos por uma professora que, incrivelmente, os orienta no objetivo suicida.

Aos olhos atentos do telespectador, não é apenas um filme jocoso. É contundente, de ironia ácida ao consumismo, que causa asco no decorrer da trama de comidaria e luxúria. Não tem violência física, tem violência moral, é um ataque à hipocrisia dos abastados, um delírio gastronômico e excludente tão degradante e perturbador quanto se vê em O poço, outra obra difícil de esquecer. É daqueles, literalmente, de revirar o estômago e de muitas reflexões.