A imagem clássica de Sérgio Sant’Anna: sentado na cadeira de balanço, com um caderno sobre o colo, lápis à mão, pernas cruzadas. Um cigarro, muitas vezes. Era assim que trabalhava. E sua literatura repete a estratégia. Cotovelos firmes sobre os braços curvos, texto que se equilibra, pra frente e pra trás, num deslizar preciso, sem grandes solavancos, calcado na segurança da maturidade, na solidez da madeira maciça. Pouco barulho no contato com o assoalho.
A morte do escritor, aos 78 anos, vítima da Covid-19, nos tira momentaneamente dessa experiência de suave roçar entre a cena e a linguagem. Machuca a realidade. “Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão escrevendo”, contou Sant’Anna um dia desses no Facebook, onde, nos últimos anos, vinha mantendo contato intenso e crítico com o mundo.
A memória fotográfica da cena do escritor em ação no apartamento de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, pode não ser real. A recordação pode ser totalmente inventada. Importa a dúvida quando se é Sérgio Sant’Anna. Os tempos verbais se misturam, a percepção sobre o texto vem à tona, com vontade de não aborrecer o leitor, apesar de trazê-lo conscientemente para dentro das “narrativas”, o termo usado pelo autor para classificar seus escritos.
O escritor carioca marcou a literatura brasileira dos últimos 50 anos com letrinha miúda, de quem burlou de propósito a aula de caligrafia para criar modo maiúsculo de fazer uma ficção em contato com outras esferas e artes – e com a própria literatura, claro. Sant’Anna nos deixa poemas, contos, novelas e romances que aceitam, mas não se contentam com a artificialidade. Nas últimas semanas, publicou dois contos inéditos em jornal e revista de circulação nacional. Estava concluindo uma novela.
São sempre narrativas que sabem brincar dentro de formas e formatos, como a dizer: é possível retornar ao que já nos é dado, o que está ao nosso redor. A peça de teatro, o concerto de música, a reportagem e a entrevista jornalísticas, a pintura, a instalação, a autobiografia, a partida de futebol, a carta, o voo de avião, o best-seller, a festa de despedida, a visita ao museu, a redação de emprego, o crime, a aula. Sim, há alguma conexão com as mitologias de Roland Barthes, se o francês fosse da ficção.
Ou se o fanático torcedor do Fluminense tivesse pendores para o ensaio, identificado como tal. Mas o olhar crítico da obra preferiu a assinatura da invenção para fuçar as estruturas da realidade. As personagens (nós) estão neste palco imenso, saturado de simulações, em que nada é gratuito, natural, harmônico. E o escritor sabia que o espetáculo literário também precisava ser divertido na sua metalinguagem. Sant’Anna, com dignidade artística raras vezes vista, manteve-se nesse projeto entre dois mundos. Vanguarda sem tirar o olho do retrovisor, que reflete uma ilusão maior ou menor sobre o público.
Em A senhorita Simpson: histórias, de 1989, encontrou ponto ótimo. Na novela que dá título ao volume, recupera o modelo de “meu tipo inesquecível” das Seleções do Reader’s Digest. E junta a isso Branca de Neve e os Sete Anões. Professora de inglês num curso noturno em Copacabana, miss Simpson vê-se envolvida com uma eclética turma de figuras masculinas. Até mesmo as personagens do livro de inglês ganham vida nesta divertida fábula pós-moderna, transformada num filme (Bossa Nova, de Bruno Barreto) bem distante do original, pelo qual Sant’Anna tinha pouco apreço.
O amor é o centro temático da trama aí e em outras histórias, com boas doses de erotismo, o que sempre ameniza os aspectos experimentais, convenhamos. Em outros casos, Sant’Anna foi criticado pela dureza de textos que travam na página, como se a vida tivesse sido objeto de excessiva manipulação, de supercorreção, quase caricatura, sem ruídos. Curiosamente, intuição e emoção reaparecem nas histórias declaradamente autobiográficas dos últimos anos. O autor de Páginas sem glória (2012) e Anjo noturno (2017) insere anedotas antigas de família, relembra a passagem por Belo Horizonte e a vida no Rio, onde foi funcionário público e professor de Comunicação.
Na última vez em que encontrei Sérgio Sant’Anna, almoçamos no tradicionalíssimo restaurante Lamas, que ele adorava e fazia parte de seu cenário. Falamos sobre futebol, falta de grana, a ótima literatura do filho André e a tragédia brasileira. Não deixei transparecer a emoção de estar ali com ele. Me comportei no papel de autor de dissertação de mestrado sobre a obra e amigo eventual graças ao jornalismo. Com problemas de saúde, ele saiu curvado, um tanto melancólico. Sempre nobre. Senti tudo como despedida.
Neste domingo, foi a vez de me curvar em tristeza ante os livros na estante e reencontrar o abraço fraterno na letra infantil e torta da dedicatória. Balancei a bandeira tricolor, em verde, branco e grená. E torci para que suas histórias de elegante e lúcida composição fossem lidas não só pelos escritores brasileiros (ou o argentino Cesar Aira, entre outros) que o veneram e têm por exemplo. Por mais gente inquieta, ao menos de agora em diante. Para sempre.
Doutor em Estudos Literários pela UFMG e autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG), Sérgio de Sá é professor na Universidade de Brasília.