Jornal Estado de Minas

MENTE LIVRE

Paulo Nazareth recolhe o corpo e expande as ideias na quarentena


“Ao final, todas as grandes viagens retornam para dentro de casa.” É de se imaginar que para o artista plástico mineiro Paulo Nazareth, acostumado a infinitas andanças para a concepção de seus mundialmente cultuados trabalhos artísticos, o período em isolamento social poderia impor limitações mais severas. Porém, a mente de Paulo Nazareth, nascido na região de Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, segue viajando de sua residência, no Bairro Palmital, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH.



Para ele, que já teve obras exibidas na Bienal de Veneza (2013 e 2015), cidade na qual nunca esteve, e na Art Basel Miami, para onde foi a pé de Minas Gerais, em 2011, passando por vários países latinos, o momento é de se voltar para dentro. 

“Na quarentena, resolvi passar os primeiros 40 dias totalmente à toa. De 17 de março a 27 de abril, com pensamento na arte, mas de maneira improdutiva. Depois retomei. A primeira parte do trabalho é esse à toa, esse ócio, essa reclusão. E os primeiros passos são olhando no entorno da casa, dando a volta no próprio corpo. Meu trabalho tem muita relação com movimento e trânsito, essa circulação pelo mundo, viagens, mas pensando que a casa também é um mundo, o entorno da gente”, diz ele, que tem passado os dias com a companheira e as crianças.

“Se a gente entende o mundo como um globo, circular, qualquer volta é uma volta, e esse círculo pode se agrandar ou se apequenar. Estamos agora no momento de se apequenar. É como o miudinho na capoeira de angola. O jogo se expande e diminui, vai e vem. Tem hora em que temos que jogar o miudinho, que é a proteção. É a hora em que se abre mão dos saltos, das acrobacias, para fazer um movimento de se recolher, como um feto, protegendo as partes vitais do corpo, lembrando também os animais quadrúpedes e quando o ser humano andava assim. Ao caminhar ereto, os órgãos vitais ficam mais expostos, por isso quando nos recolhemos nos protegemos”, afirma o artista viajante.



Desse modo, entre algumas tarefas domésticas, ele encontra tempo para revisitar a prática que marcou o início de sua diversificada trajetória artística, aperfeiçoada nos estudos com Mestre Orlando (1944 - 2003), referência nacional na área. “Tenho recolhido galhos para esculpir e talhar formas que se aproximam do conceito de carranca, serpentes de madeira, que espalho pelo entorno da casa, como uma espécie de proteção”, afirma.

Mesmo nesse recorte aparentemente diminuto, do corpo e do lar, Nazareth vai longe, sem deixar de lado um de seus mais importantes trabalhos, desenvolvido desde 2012, chamado Cadernos de África. A proposta conceitual, que inclui fotografia e outras experimentações e instalações, começa justamente em um espaço domiciliar, que é a cozinha da casa da mãe, e se expande mostrando a universalidade do território do continente africano percorrido por ele.

“Tenho feito essas viagens há um tempo. Vou à África e depois à cozinha de minha mãe. É um vaivém. Agora é o momento do miudinho, de viajar em volta do corpo. São linhas. Às vezes, andamos por BH e desconhecemos muitos caminhos que existem no nosso bairro, porque nos viciamos em um trajeto. Então é um momento de reconhecer esses detalhes, o próprio corpo, a própria casa. O corpo da gente é um mundo, um universo, que a gente desconhece”, diz o artista, que já esteve em Moçambique, na Nigéria, no Malawi e em outras nações da porção Sul do continente fazendo seus registros.




POLÍTICA 

Embora ressalte a reflexão individual a ser feita neste período, Paulo Nazareth deixa claro que encara o contexto da pandemia e do isolamento social como “uma questão política”. Tendo o entendimento crítico do deslocamento humano e dos territórios como ponto central de suas obras, ele aproveita a configuração estabelecida pela quarentena para fazer questionamentos. Para Nazareth, se é fato que a pandemia fez com que muitas pessoas ficassem impedidas de viajar ou circular livremente, é preciso reconhecer que uma enorme parcela da população mundial já estava sujeita a essa limitação antes da crise sanitária.

“Mesmo nos países ditos desenvolvidos, isso de pegar uma avião e ir para outro país ou continente é para poucos. Nos Estados Unidos, por exemplo, são muitas as questões políticas e econômicas que impossibilitam muita gente de se deslocar até mesmo dentro do país. É um livre, mas não tão livre. O custo é elevado para muita gente. É como aqui. Em Minas, nas férias, alguns conseguem ir até Guarapari, Porto Seguro, mas é uma mobilidade reservada para poucos. Muitos conseguem ir no máximo ao interior, onde há algum parente. Até viajar dentro do estado é caro. E o engraçado é que as pessoas que têm essa mobilidade de pegar um avião e estar noutro estado ou país são as mesmas que têm o privilégio de poder estar em casa neste momento de quarentena. O isolamento não é para todos”, aponta.

Em sua opinião, “as pessoas que hoje cobram o fim do confinamento são muitas vezes as que têm o privilégio do confinamento. Muitas que são obrigadas a sair não estão cobrando, esperando um auxílio emergencial que nunca chega. Há uma briga pelo direito ao trabalho, sendo que há um trabalho que segue existindo, como o trabalho infantil. Muita gente não tem a possibilidade nem de brigar por isso, por não ter a possibilidade de escolha. Precisamos do confinamento neste momento, é importante, mas é um privilégio. Nos EUA, quem está morrendo pelo coronavírus? O imigrante, os ilegais, os pobres. Em São Paulo e nas grandes cidades brasileiras, quem morre? O negro, o nordestino, o morador de periferia”.



O artista mineiro, que expôs alguns resultados de Cadernos de África na Bienal de Lyon, em 2013, também sem ter ido à Europa, onde só pretende pisar depois que percorrer toda a África, destaca que a humanidade já passou por outras tormentas como a atual pandemia, citando a peste bubônica, na Idade Média, e a gripe espanhola de 1918. Nessas ocasiões como agora, ele avalia, “sempre houve os mais egoístas e os que trabalharam pelo bem comum”.

“É um momento que deveria ser mais propício à solidariedade, mas o que acontece hoje no mundo e no Brasil é que as pessoas não têm vergonha de ser fascistas ou egoístas. Aqui ou nos EUA, quando há um governo que propaga isso, pessoas se sentem à vontade para tirar as máscaras e se mostrar mais violentas com o outro, especialmente com aquilo que que elas julgam ser feio. Julgam o outro feio e o feio pode ser morto e desaparecido”, explica Nazareth.

Ex-aluno da Escola de Belas Artes da UFMG, estende a crítica ao universo das artes. “Penso no que eu trabalho. Durante muito tempo, pensou-se  a estética nas chamadas belas artes, que devem mostrar o que é bonito. As pessoas continuam pensando nisso e querendo que o que elas consideram feio morra, na arte e na vida. Não gostam de banguelas, ou seja, podem desaparecer, assim como os velhos enrugados. Por isso, agora não ligam se os mais velhos, os pretos, os pobres, os sujos e a população de rua desaparece, porque consideram que essas pessoas não são dignas de existir, se não fazem parte da ‘fine art’. Não é uma coisa nova. Para a gente que luta por uma outra estética e para que outras vidas sigam, vamos continuar lutando, já lutávamos antes. A arte vem sofrendo ataques no Brasil há tempos, justamente por apontar caminhos diferentes da beleza já estabelecida.”



Para o futuro, Paulo Nazareth pretende dar sequência aos Cadernos de África, percorrendo o Norte do continente, mesmo que se depare com um mundo com maiores restrições nas fronteiras, sobre as quais há muito já fala em sua arte. “Em uma exposição que fiz em 2008, chamada Sobre o deslocamento de coisas e gente, tratava sobre como o trânsito de comidas e mercadorias é muito mais possível que o das pessoas. O povo negro, da África, quando era tratado como propriedade, tinha o trânsito livre. Foram cerca de 5 milhões que chegaram ao Brasil. Hoje, essa entrada é cheia de restrições. Há uma repulsa, assim como em outros países.”

Ampliando a perspectiva do trabalho, aos 43 anos, Nazareth pretende construir o que chama de “A trilogia dos ás”, no caso África, América e Ásia. “Sigo na construção do mundo contemporâneo e tudo começa na cozinha, quando o europeu precisou ir à Ásia buscar especiarias, temperos, e aí surge a África no caminho e depois a América. No fim das contas, são grandes viagens, invasões e navegações, que no fim acabavam na cozinha, com a cana-de-açúcar, o pau-brasil para tingir tecido ou o chá.”