Se não fosse a pandemia do novo coronavírus, que interrompeu as principais competições esportivas do planeta, a NBA, a liga do basquete profissional nos EUA, estaria hoje em sua fase decisiva de playoffs. Só não é possível saber se o campeonato seria tema de tantas manchetes e postagens nas redes sociais pelo mundo, como o basquete norte-americano tem sido nas últimas semanas, graças à série documental The last dance, que no Brasil ganhou o título Arremesso final. Embora a trajetória de Michael Jordan no Chicago Bulls tenha se encerrado justamente num tiro certeiro, quase no estouro do cronômetro, em junho de 1998, definindo a final contra o Utah Jazz e o sexto troféu para o time, a história mostrada em 10 episódios pela Netflix vai além da quadra.
Produzida em parceria com a ESPN e dirigida por Jason Heir, a série sobre a última temporada do maior jogador de basquete no time que o consagrou alimentou polêmicas e se tornou a mais assistida do mundo, entre as documentais.A Netflix não costuma divulgar dados concretos sobre a audiência, mas informou na última quarta (20) que 23,8 milhões de pessoas assistiram a Arremesso final fora dos Estados Unidos, desde o lançamento do primeiro capítulo, em 20 de abril.
Nos EUA, onde também foi exibida no canal por assinatura ESPN, os dois episódios de estreia, em 19 de abril, bateram a marca de 6,1 milhões de espectadores. O recorde para uma produção documental no canal era de 3,6 milhões, com a exibição de You don’t know Bo, sobre o jogador de beisebol e futebol americano Vincent Edward “Bo” Jackson, em 2012.
Para comparação, o fenômeno Game of thrones só conseguiu ter mais de 6 milhões de espectadores em um único episódio ao vivo na TV norte-americana a partir da quarta temporada (2014). Segundo a empresa norte-americana especializada em monitoramento midiático Parrot Analytics, Arremesso final se tornou a série documental mais buscada do mundo e a de maior crescimento de interesse, entre todos os gêneros, desde a última semana de abril.
BUSCAS
O que explica tanto sucesso, além da conhecida coleção de enterradas, saltos, arremessos e dribles de Jordan? Mais que um deleite para os fãs de basquete, carentes das atuais competições e saudosos do time apontado como o melhor da história, o documentário toca em pontos sensíveis, criando contradições para o protagonista.
Com entrevistas recentes e imagens de bastidores, algumas inéditas, mas todas com notável qualidade gráfica, mesmo registradas há mais de 20 ou 30 anos, tudo é contado simultaneamente em duas linhas do tempo. Uma delas começa em outubro de 1997, quando o Chicago Bulls, campeão da NBA em 91, 92, 93, 96 e 97, se preparava para a temporada 98, que poderia ser a última não só de Jordan, mas de seus principais companheiros e do vitorioso treinador Phil Jackson. Todos eles estavam sob indefinições contratuais e em crise com a direção do time, personificada em Jerry Krause (1939 – 2017).
Em algumas das imagens resgatadas daquela época, eles se referiam ao campeonato que estava por começar como “a última dança”, pois, apesar da incerteza sobre o futuro, era claro o desejo de dar um novo show em quadra.
A outra linha temporal se inicia em 1984, ano em que o jovem Michael Jordan deixa o time universitário da Carolina do Norte e se junta a até então fracassada franquia de Chicago, com a promessa de que mudará sua história. As duas margens do tempo se encontram no “arremesso final”, em Salt Lake City.
Entretanto, esse retorno mais amplo ao passado detalha como além de um profissional obcecado pela vitória, a ponto de agredir colegas de time, Jordan se tornou também “uma grande força cultural, que ajudou a criar uma forma diferente de pensar o atleta afro-americano e ver os atletas como parte do mundo do entretenimento” e “um embaixador extraordinário, não só para o basquete, como para os EUA no exterior”, nas palavras do ex-presidente Barack Obama, um dos entrevistados no documentário.Os depoimentos gravados entre 2018 e 2020 ainda incluem o também ex-presidente Bill Clinton, jornalistas, personalidades ligadas ao esporte, ex-companheiros, adversários, além, é claro, do próprio Jordan, hoje com 57 anos. Eles explicam como o jogador se tornou uma das figuras mais populares do mundo.
A genialidade em quadra aparece junto com a revolução que causou na publicidade, com seu modelo exclusivo de tênis, cujos comerciais eram dirigidos por Spike Lee, e como tornou a NBA uma febre mundial nos anos 1990.Nesse processo, aspectos mais tortuosos não foram descartados.
Sem deixar de conferir heroísmo e uma imagem grandiosa a Jordan, o roteiro resgata a rivalidade exagerada com Isiah Thomas, jogador do Detroit Pistons, que teria sido vetado por ele na convocação para o “Dream Team” que jogou a Olimpíada de 1992, com depoimentos de ambos sobre o tema.
O último arremesso também entra na polêmica omissão do astro na eleição de 1990, quando Harvey Gantt, do partido Democrata, concorria ao senado, podendo se tornar o primeiro político negro a ocupar o cargo pela Carolina do Norte. Ele disputava contra o conservador Jesse Helms, conhecido por posicionamentos racistas. Jordan evitou declarar apoio a Gantt, supostamente por dizer que “republicanos também compram tênis”. Na série, ele esclarece o fato.
TEMPERAMENTO
Como foram lançados dois episódios por semana, entre 19 de abril e 18 de maio, na ESPN norte-americana e na Netflix, a cada par de capítulos os assuntos mostrados renderam novas entrevistas e muitos comentários. O temperamento complicado e até agressivo de MJ com os colegas de time que ele considerava como pontos fracos da equipe foi um dos principais temas de debate.
Isso já havia sido contado quase 30 anos antes, no livro Jordan rules, do jornalista Sam Smith, mas voltou à tona com o documentário. O atleta dá sua versão sobre o assunto, bem como os ex-colegas que eram seus alvos, mas houve descontentamento com o resultado final da edição.O ex-pivô Horace Grant, que participa da série e a quem Jordan acusa de vazar para jornalistas informações de bastidores negativas para o astro dos Bulls, concedeu entrevista recente a um programa de rádio dos EUA, na qual critica a edição. Ele dá a entender que não teve direito de resposta sobre algumas coisas ditas pelo camisa 23. “Mentira, mentira, mentira. Se MJ tinha algum ressentimento comigo, vamos resolver isso como homens”, afirmou, sobre a acusação de Jordan.Outros ex-atletas, que aparecem nas imagens e são citados por Jordan, preferiram não dar entrevista. Foi o caso de Karl Malone e Bryon Russell, jogadores do Utah Jazz, derrotadas pelo Chicago Bulls nas finais de 97 e 98. O diretor Jason Heir, conhecido até então por outras produções menos badaladas sobre esporte norte-americano, revelou as negativas em entrevista recente ao radialista Dan Patrick.
Heir ainda contou que John Stockton, também do Utah, só aceitou ser entrevistado depois de dois anos de tentativas, quando convencido de que não se tratava “de uma produção que ficaria idolatrando Michael Jordan”. Ainda assim, só no Brasil as vendas on-line de produtos relacionados ao Chicago Bulls registraram aumento de 650% na revendedora da loja oficial da NBA, nos últimos 30 dias, segundo o site UOL. Os 10 episódios de Arremesso final estão disponíveis na Netflix.
Top ten
Confira os 10 pontos que tornam Arremesso final um sucesso de audiência
1- Time dos sonhos de entrevistados
Além de Jordan, a série é um reencontro com ícones do basquete dos anos 1980 e 1990, como Scottie Pippen, Toni Kukoc, Charles Barkley, Isiah Thomas, Dennis Rodman, Patrick Ewing e Magic Johnson, todos 30 anos mais velhos.
Além de Jordan, a série é um reencontro com ícones do basquete dos anos 1980 e 1990, como Scottie Pippen, Toni Kukoc, Charles Barkley, Isiah Thomas, Dennis Rodman, Patrick Ewing e Magic Johnson, todos 30 anos mais velhos.
2- Festival de enterradas
A edição inclui as jogadas mais plásticas e marcantes executadas por Air Jordan em quadra.
3 - As glórias
Jordan ganhou a NBA seis vezes, mas o caminho até lá não foi fácil, como mostram os episódios que incluem as derrotas nos anos 1980.
Jordan ganhou a NBA seis vezes, mas o caminho até lá não foi fácil, como mostram os episódios que incluem as derrotas nos anos 1980.
4 - As dores
Jordan perdeu o pai, assassinado em 1993. A série mostra como isso e a pressão da mídia na época fizeram com que ele largasse o basquete, para retornar um ano e meio depois.
5 - A memória de Kobe
Apontado como o maior depois de Jordan, Kobe Bryant gravou seus depoimentos dias antes de morrer em um acidente aéreo, em janeiro deste ano. Ele também aparece em imagens de 1998, quando era um jovem novato.
Apontado como o maior depois de Jordan, Kobe Bryant gravou seus depoimentos dias antes de morrer em um acidente aéreo, em janeiro deste ano. Ele também aparece em imagens de 1998, quando era um jovem novato.
6 - O discreto e genial Scottie Pippen
A série mostra como Pippen foi decisivo nas conquistas de MJ, mesmo com um salário muito abaixo do que merecia dentro dos padrões
A série mostra como Pippen foi decisivo nas conquistas de MJ, mesmo com um salário muito abaixo do que merecia dentro dos padrões
da NBA.
7- Dennis Rodman
O excêntrico defensor foi peça-chave no Bulls, mesmo com uma coleção de loucuras fora das quadras, contadas em cena.
O excêntrico defensor foi peça-chave no Bulls, mesmo com uma coleção de loucuras fora das quadras, contadas em cena.
8 - O mestre zen
Outro personagem fundamental nas glórias de MJ, o treinador Phil Jackson e sua metodologia baseada na filosofia oriental têm grande destaque.
Outro personagem fundamental nas glórias de MJ, o treinador Phil Jackson e sua metodologia baseada na filosofia oriental têm grande destaque.
9 - Barack Obama
Fã de basquete, o ex-presidente dá depoimentos sobre sua relação pessoal com o Chicago Bulls, da época em que vivia na cidade, e sobre o que Jordan representa.
Fã de basquete, o ex-presidente dá depoimentos sobre sua relação pessoal com o Chicago Bulls, da época em que vivia na cidade, e sobre o que Jordan representa.
10 - Air Jordan
Além de personagem principal, o maior jogador de todos os tempos é o entrevistado que mais aparece.