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Estado de Minas LIVRO

Sai no Brasil 'A grande gripe', retrato aterrador de uma pandemia

Livro do historiador John M. Barry reconstrói as circunstâncias da epidemia surgida em 1918, revelando aspectos da busca científica por soluções e o impacto das mortes na sociedade


postado em 30/05/2020 04:00

O autor John M. Barry, cujo livro foi recomendado por Bill Gates como leitura necessária na atual pandemia do novo coronavírus (foto: Chris Granger/Divulgação)
O autor John M. Barry, cujo livro foi recomendado por Bill Gates como leitura necessária na atual pandemia do novo coronavírus (foto: Chris Granger/Divulgação)

É aterrorizante, mas fascinante em igual medida. Um livro publicado originalmente há 16 anos, sobre acontecimentos de 102 anos atrás, carrega uma atualidade gritante. Infelizmente. Até então inédito no Brasil, A grande gripe (2004), do jornalista e historiador norte-americano John M. Barry, acaba de ganhar edição nacional pela Intrínseca.

O título, obviamente, refere-se à gripe espanhola (1918-1920), o maior paralelo que podemos ter com a pandemia do novo coronavírus em curso. Ainda que a gripe – que dizimou entre 21 milhões, a estimativa mais baixa, e 100 milhões de pessoas, como acreditam alguns epidemiologistas contemporâneos – seja um tema corrente desde que a quarentena tenha se iniciado, Barry vai muito além de recontar essa história. 

A grande gripe traz seu aspecto de reportagem de fôlego, com a escrita fluida do autor nos levando diretamente para os acontecimentos do início do século 20. Mas uma epidemia envolve tudo e  todos. Tanto que a leitura vai também por outras searas, com o historiador ora versando sobre os (des) caminhos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ora explicando aspectos mais científicos. Quando vai tratar dessa questão, toma para si que os leitores não têm que saber muito sobre o assunto e, assim, ele apresenta, por exemplo, a evolução de vírus e bactérias de forma acessível.

Hospital de emergência do Exército dos Estados Unidos, em 1918. A imagem integra o livro A grande gripe, de John M. Barry (foto: Acervo do Museu Nacional de Saúde e Medicina)
Hospital de emergência do Exército dos Estados Unidos, em 1918. A imagem integra o livro A grande gripe, de John M. Barry (foto: Acervo do Museu Nacional de Saúde e Medicina)


EPICENTRO 

O título é lançado quando o Brasil se torna o novo epicentro da pandemia, graças a um tour de force editorial. A edição envolveu diretamente 11 profissionais: seis tradutores, três preparadores, um revisor e um revisor técnico. 

Para quem se apega a credenciais, A grande gripe é ainda um dos títulos que Bill Gates sugere para ler na pandemia. Em sua já tradicional lista anual de sugestões, divulgada há alguns dias, o bilionário, cofundador da Microsoft, afirma que o livro “é um bom lembrete de que ainda estamos enfrentando muitos dos mesmos desafios”.

Na dedicatória da obra, Barry dá especial atenção a Paul Lewis (1879-1929), que integrou a primeira geração de médicos cientistas dos EUA e um dos principais pesquisadores da causa, da cura e da prevenção contra a gripe. O patologista, morto na Bahia quando veio ao país pesquisar a febre amarela, se soma a uma série de nomes notáveis sobre os quais o autor discorre. 

O primeiro terço da narrativa se debruça na trajetória de pesquisadores como Lewis e sobre como eles desbravaram um terreno inóspito. Os Estados Unidos, até as últimas décadas do século 19, eram sinônimo de atraso científico. Médicos se formavam em universidades sem nunca ter encostado em um paciente; faculdades de medicina (e estamos falando inclusive daquelas que hoje integram a Ivy League) não contavam com um só microscópio e pouco davam acesso aos alunos às suas bibliotecas. 

O avanço científico estava na Europa, especialmente na Alemanha. A partir da criação da Johns Hopkins, em Baltimore, em 1876, o cenário, ainda que a passos lentos, começa a mudar.

Barry se dedica com paixão aos personagens, tecendo perfis biográficos cheios de detalhes. Um dos nomes que emergem na narrativa é William Henry Welch (1850-1934), que o autor considera a pessoa mais poderosa da história da medicina americana. Desacreditado no início da carreira, Welch, um solitário genial que sempre se manteve distante das relações pessoais, foi um dos professores da Hopkins que fundou o hospital da instituição. 

Atuante no corpo médico do Exército dos EUA durante a Primeira Guerra, desempenhou um papel determinante na resposta à pandemia de gripe espanhola. Há detalhes demais – ficamos sabendo, por exemplo, que o médico do interior do Kansas que se atentou para os primeiros casos da futura pandemia era um beberrão inveterado. Para os leitores mais interessados na ação, digressões do autor podem atrasar a leitura. 

A grande gripe vai sendo desenhada como “o primeiro grande choque entre a natureza e a ciência moderna”, escreve Barry. A gripe espanhola teria se originado em um lugarejo perdido no mundo: o condado de Haskell, no Kansas. O próprio autor recupera tal narrativa, mesmo afirmando que não há como ter 100% de certeza de que ela é verídica.

SURTO 

A partir do primeiro surto, em janeiro e fevereiro, ela desapareceu daquele lugarejo. Não estivesse o mundo em guerra – os EUA entraram na Primeira Guerra em abril de 1917 – talvez o ocorrido no Kansas não tivesse se alastrado. Fato é que, já em março, as bases militares que recebiam soldados de Haskell registraram os primeiros surtos de gripe. Foi uma questão de semanas para que os americanos enviados para combater na Europa levassem a gripe, que ganhou o mundo. 

A Espanha, que se mantivera neutra no conflito, publicava as notícias da pandemia, enquanto os demais países, em guerra, tinham a imprensa censurada. Daí o nome “gripe espanhola”, pois era nos jornais daquele país que a história estava sendo contada. 

O autor acompanha, muito de perto, as consequências. Nos hospitais, transformados em verdadeiros campos de batalha, Barry descreve tratamentos feitos na base da tentativa e erro. Houve médicos que prescreveram morfina e heroína aos pacientes. O livro destaca até mesmo tratamentos à base de sanguessugas. 

A gripe veio em ondas. Se no primeiro semestre de 1918 houve poucas mortes, já na metade do segundo a letalidade foi aterradora. Meticuloso, Barry não poupa o leitor. “Os corpos ficavam nas casas onde tinham morrido e, quando morriam, muitas vezes fluidos de sangue escorriam de narinas e bocas. As famílias cobriam os corpos com gelo; mesmo assim,  os cadáveres começavam a apodrecer e a feder.” 

Não faltaram decisões erradas. Apesar da propagação da gripe na época, as autoridades da Filadélfia prosseguiram com um desfile que reuniu 200 mil pessoas para promover os títulos do governo emitidos para pagar a Primeira Guerra. 

Três dias depois da parada, todos os leitos dos 31 hospitais da cidade estavam ocupados, tanto que as instituições passaram a recusar pacientes. Os enfermeiros recusavam subornos que chegavam a US$ 100, o livro destaca.

Também nos relatórios médicos da época são descritas medidas que tentam evitar a contaminação. O uso de máscaras revelou-se bem-sucedido; evitar aglomerações foi “uma das medidas mais vitais para combater o contágio”.

Colocada em perspectiva no livro, a pandemia de um século atrás é uma história de morte, tragédia, erros, mas também de descobertas da ciência e de como se pode mudar a maneira de pensar. Uma reflexão e tanto para os tempos de agora.


TRECHO

“Normalmente, a gripe mata principalmente idosos e crianças, mas, na pandemia de 1918, aproximadamente metade dos que morreram eram homens e mulheres jovens no auge da vida, na faixa dos 20 aos 30 anos. Harvey Cushing, na época um jovem e brilhante cirurgião que alcançou grande fama – e que ficou desesperadamente doente com a gripe e nunca se recuperou de todo de uma provável sequela – chamaria aquelas vítimas de ‘duplamente mortas por terem morrido tão jovens’.

Não é possível ter certeza, mas, se a estimativa mais alta de número de mortes for correta, de 8% a 10% de todos os jovens adultos da época podem ter morrido por causa do vírus.

E morreram com ferocidade e rapidez extraordinárias. Embora a pandemia de gripe tenha se prolongado por dois anos, talvez dois terços das mortes tenham ocorrido em um período de 24 semanas, e mais da metade dessas mortes se deu em menos tempo, de meados de setembro a início de dezembro de 1918. A gripe matou mais pessoas em um ano do que a peste bubônica da Idade Média em um século; matou mais pessoas em 24 semanas do que a AIDS em 24 anos.”


A grande gripe
. John M. Barry
. Intrínseca (608 págs.)
. R$ 59,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)






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