No último dia 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, Sandra Kogut se preparava para uma das pré-estreias de seu novo filme, Três verões, marcada para o dia seguinte, em Brasília.
Ainda que a sessão tenha ocorrido conforme o planejado, o clima já era de incerteza. ''Como a gente pode convidar as pessoas para ir ao cinema, se a recomendação é ficar em casa?'', questionou ela, ao adiar, por tempo indeterminado, a estreia do longa, programada para mais de 100 salas brasileiras, em 19 de março.
Passados três meses, o título ganha uma nova oportunidade de chegar ao público na próxima segunda-feira (22), por meio de uma iniciativa do Espaço Itaú de Cinema. A partir desta sexta-feira (19) até o dia 29, a instituição promove, em parceria com a plataforma Looke Eventos Paralelos, um festival de pré-estreias. Batizado como Espaço Itaú Play, o projeto tem o objetivo de manter a oferta de filmes inéditos durante a quarentena, ainda que de forma virtual. O complexo de salas pretende exibir os títulos participantes, quando a reabertura dos cinemas for autorizada.
A estreia da iniciativa traz o novo filme do cineasta pernambucano Cláudio Assis (Piedade) e um documentário norte-americano sobre Alice Guy-Blaché, pioneira no cinema francês, como atrações. Para assistir a cada título é necessário comprar o ingresso (R$ 10), que valerá por 48 horas. Uma parcela do valor será destinada a uma associação de profissionais do audiovisual, para auxiliar os mais afetados pela suspensão das atividades durante a pandemia.
Escalado para segunda (22) e terça (23), junto com A febre, de Maya Da-Rin, Três verões aborda as consequências da Operação Lava-Jato sob a ótica dos que orbitam em torno daqueles que se envolveram em escândalos de corrupção.
No roteiro assinado pela diretora em parceria com Ilana Casoy, Madá (Regina Casé) lidera um grupo de empregados de uma casa de verão que fica sem patrões após a prisão de Edgar (Otávio Muller) e a fuga da mulher e do filho do empresário para o exterior. No andar de cima, o único remanescente é Lira (Rogério Fróes), pai de Edgar, um professor que se vê no fim da vida frustrado com as escolhas do filho.
''Essa ideia surgiu de uma vontade de falar sobre este momento que marcou a história do país'', conta a diretora. ''Pela mídia, acompanhamos uma série de escândalos, mas nunca nos foi mostrado como ficaram as pessoas que, de alguma maneira, gravitavam em volta de quem foi preso. A partir disso, pensamos nesse lugar que é a casa de verão de uma família rica, onde, na maior parte do tempo, os empregados estão sozinhos.''
A vida desses personagens, como indica o título, é contada a partir de três verões na mansão, de 2015 a 2017, sempre na última semana do ano.
PERMANÊNCIA ''A estrutura episódica foi uma escolha conceitual para mostrar como os acontecimentos do fim do ano tinham uma certa permanência que, de repente, não existe mais. Além disso, tem a questão de essa ser uma casa secundária onde, fora das datas comemorativas, só há empregados'', comenta a diretora.
Rodado em 2018, antes do resultado da eleição presidencial que deu a vitória a Jair Bolsonaro, o filme começou a ser montado com o resultado do pleito já conhecido. ''Entrar na ilha de edição nesse momento foi muito emblemático para mim. Quando comecei a olhar o material, senti que o filme é um retrato imediatamente anterior à ascensão da extrema-direita ao poder.''
Crítico sem ser panfletário, o longa conta com uma série de cenas cômicas que debocham das classes dominantes. Três verões explora a tensão entre patrões e empregados, reforçando a ideia de que as relações de trabalho, ao menos no Brasil, se valem de uma ideia de intimidade para mascarar a exploração. O roteiro mostra também as estratégias de trabalhadores para se desdobrarem em dois ou mais empregos ou atividades para garantir uma renda maior.
O filme marca o retorno da parceria entre a diretora e a atriz Regina Casé. As duas haviam trabalhado juntas no curta-metragem Lá e cá, de 1995. Pela atuação no longa, Regina recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio no ano passado.
''Ela é, para mim, uma amiga e parceira de muitos anos'', comenta Sandra. ''Desde o meu primeiro curta, trabalhamos muito juntas e, há muitos anos, eu queria achar um projeto que parecesse ser o certo para retomar a parceria.''
Por ser também empregada doméstica, é comum que surjam comparações com Val, a personagem de Regina em Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, ou mesmo com a Lurdes, babá que a atriz intepreta atualmente na novela das 21h da Globo, Amor de mãe – fora do ar devido à pandemia.
Na opinião de Sandra, Val é uma espécie de símbolo da inclusão social da classe baixa no começo da década, enquanto Madá representa bem os últimos anos do país.
PATROA ''A Madá é praticamente uma patroa na pele de empregada. Além disso, são dois momentos do Brasil. O que eu retrato no meu filme é o neoliberal, onde é cada um por si, tudo tem que ser potencialmente um negócio e os laços do que é o coletivo estão se desfazendo'', afirma.
Exibido na última edição do Festival de Toronto, o filme tem conquistado o público internacional. Na França, onde ficou quatro dias em cartaz antes do lockdown, Três verões ocupou 70 salas de cinema. Agora, com a reabertura dos cinemas no país europeu, o longa volta a ser exibido em 76 salas, a partir do próximo dia 22.
''Quando a pandemia começou, tínhamos tantos convites de festivais, lançamentos em outros países, que a equipe não estava dando conta de tanta demanda. Agora, tudo está suspenso, mas, aos poucos, as coisas vão se ajeitando'', diz a diretora.
''O Brasil está tratando a pandemia com muita dificuldade, então é muito difícil saber o que vai acontecer nos próximos meses. Além de tudo ser muito desorganizado, a cultura não recebe apoio, então é um momento de total sucateamento.''
Nesse contexto, a cineasta não se incomoda de seu filme ser exibido em outras plataformas que não as salas escuras de cinema. ''Nunca fui e não sou purista. O cinema existe de muitas maneiras, veja só os drive-ins que agora estão voltando. É claro que, na tradicional sala de cinema, o que a gente tem é uma experiência pessoal e coletiva ao mesmo tempo, o que não dá para reproduzir em qualquer lugar, mas não quer dizer que o filme não possa ser exibido'', pondera. ''O objetivo dos meus trabalhos é chegar à maior quantidade de pessoas possível.''
Desafio que ela acredita ser impossível de ignorar são as mudanças que a produção de filmes deve sofrer. Na pré-pandemia, os sets de filmagem contavam com equipes robustas, por exemplo. Agora, isso deve mudar para atender aos novos protocolos de segurança.
''Sem dúvida, vamos ter que reinventar um monte de coisas. É como trocar o pneu com o carro andando: todo mundo está aprendendo à medida que as coisas vão acontecendo'', diz. ''O que acho que vai acontecer é que nós, cineastas, vamos acabar integrando essas mudanças no próprio processo artístico. Ainda bem que somos de uma área muito criativa.''
Mineiro na programação
Dirigido pelo mineiro Helvécio Marins Jr., o longa Querência (foto), que teve sua estreia no Festival de Berlim, estará disponível para streaming nos próximos dias 24 e 25. Rodado na região de Unaí, em Minas Gerais, o filme conta a história de um vaqueiro cuja vida é transformada depois que um grande roubo de gado ocorre na fazenda em que ele trabalha. Com a ajuda de sua irmã e de amigos, o vaqueiro se reergue para realizar seu maior sonho: tornar-se um grande narrador de rodeios.
MENU DEGUSTAÇÃO
Confira os filmes que participam do festival de pré-estreias com “ingressos” a R$ 10 e prazo de 48 horas para assisti-los:
19/6 e 20/6
» Piedade, de Cláudio Assis (disponível gratuitamente na sexta)
» Alice Guy-Blaché: A história não contada da primeira cineasta do mundo, de Pamela B. Green
20/6 e 21/6
» Aos olhos de Ernesto, de Ana Luiza Azevedo
» O conto das três irmãs, de Emin Alper
21/6 e 22/6
» Piedade, de Cláudio Assis
» Deerskeen: A jaqueta de couro de cervo, de Quentin Dupieux
22/6 e 23/6
» A febre, de Maya Da-Rin
» Três verões, de Sandra Kogut
23/6 e 24/6
» Música para morrer de amor, de Rafael Gomes
» O orfanato, de Shahrbanoo Sadat
24/6 e 25/6
» Querência, de Helvécio Marins Jr.
» Boni bonita, de Daniel Barosa
25/6 e 26/6
» Pacarrete, de Allan Deberton
» Liberté, de Albert Serra
26/6 e 27/6
» Dora e Gabriel, de Ugo Giorgetti
» O chão sob meus pés, de Marie Kreutzer
27/6 e 28/6
» Guerra de algodão, de Marília Hughes e Cláudio Marques
» Viver para cantar, de Johnny Mo
28/6 e 29/6
» Mangueira em dois tempos, de Ana Maria Magalhães
» Suk suk, de Ray Yeung
Mais informações e acesso aos filmes: www.itaucinemas.com.br/espacoitauplay/