Selecionado para representar os povos indígenas na abertura da Copa do Mundo de 2014, em São Paulo, Werá Jeguaka Mirim, da aldeia Krukutu, na região de Parelheiros, extremo Sul da cidade, caminhou sobre o gramado da Arena Corinthians para soltar uma das três pombas da paz antes do início da partida entre os times do Brasil e da Croácia.
Na saída do campo, porém, ele, então com 13 anos, quebrou o protocolo e abriu uma faixa vermelha pedindo pela demarcação das terras indígenas.
Seis anos após o protesto, que repercutiu internacionalmente, a causa defendida por esses povos segue sem avanços significativos. E Werá, hoje aos 19, faz uso da música e da literatura para dar visibilidade à realidade de seu povo.
''É um costume na nossa aldeia ir à noite na casa de reza, fumar o nosso cachimbo e entoar cânticos pedindo força'', conta. ''Nós, os guaranis, temos uma ligação muito forte com a música, e isso foi o que me levou a gostar de rap. Nas minhas músicas e na literatura nativa que produzo, escrevo sobre o meu povo e a nossa luta.''
Para apresentar as rimas do que chama de rap indígena, ele assume o nome artístico Kunumi MC – uma derivação de ''curumim'' (criança, em tupi-guarani) –, ou seja, “jovem MC”.
Em seu trabalho mais recente, Xondaro ka’aguy reguá (Guerreiro da floresta), disponível nas plataformas digitais, ele retrata a realidade dos povos indígenas desde a invasão dos portugueses até o presente momento.
''A música fala sobre um guerreiro que nasceu das águas e veio para libertar os indígenas e lutar por eles. É uma maneira de dizer que surgiu um MC indígena. Mas também não falo só de mim. A todo momento está surgindo um indígena para falar sobre o seu povo. Já faz tempo que muitas pessoas querem ajudar o indígena, mas por que um indígena não pode ajudar seu próprio povo?'', questiona.
Cantada em guarani e com produção assinada por Fadel Dabien, a música tem sonoridade contemporânea, com referências ao reggaeton e à trap music, e traz samples de violino indígena, com um resultado alinhado com a estética futurista.
''Nela, tento mostrar que dá para colocar elementos indígenas em um rap. Não basta cantar em guarani, é importante mostrar elementos nativos'', comenta Kunumi.
''Antigamente, na floresta, havia muitas frutas para comer/ Mas os brancos vieram e destruíram tudo o que Deus criou'', canta ele, em um dos versos. ''Nativos e originários dessa terra, Brasil/ Desde mil e quinhentos vivemos em guerra/ Nosso povo foi oprimido e dizimado por não aceitar ser escravizado'', prossegue a letra.
Para ele, a solução para o aquecimento global – um dos temas abordados em Guerreiro da floresta – está nas mãos dos povos indígenas. ''A única saída que enxergo é a preservação das florestas, o que só vai acontecer se mais terras indígenas forem demarcadas. Para nós, o progresso está na floresta e a preservação dela é o verdadeiro enriquecimento'', afirma.
Dirigido por Bruno Silva e Gabe Maruyama, da Angry Films, o videoclipe da canção, com cenas gravadas na tribo Krukuto e na Avenida Paulista, em São Paulo, é um convite à reflexão. Para além da beleza estética das imagens, que trazem Kunumi MC como o guerreiro da floresta dotado de poderes sobrenaturais, o vídeo representa uma nova geração de indígenas que usam a educação, a arte e a tecnologia para defender e proteger suas terras
CRÉDITO
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'Hoje o indígena tem a liberdade de usar uma arte para lutar. Muita coisa indígena foi roubada e patenteada sem que recebêssemos o devido crédito. Então, a gente não vai virar branco porque estamos usando coisas que não são do índio. A internet, por exemplo, está a nosso serviço para lutar e eu uso a literatura, a música e o rap para defender o meu povo e divulgar as nossas causas'', comenta.
Além de Xondaro Ka’aguy Reguá (Guerreiro da floresta), Kunumi MC tem outros dois registros de estúdio: o EP My blood is red (2017) e o álbum Todo dia é dia de índio (2018). Como rapper, ele ainda colaborou com Criolo na música Demarcação já – Terra, ar, mar; e com Souto MC e Bia Ferreira na canção Festa e fartura. Em 2014, Kunumi publicou dois livros: Contos dos curumins guaranis (FTD) e Kunumi guarani (Panda Books).
''Acredito que minha música é muito importante para a sociedade entender que nós, os indígenas, estamos resistindo, mas também precisamos de ajuda. A nossa luta é a luta pela terra e pela floresta. Pela preservação da natureza'', afirma. ''E a minha literatura é uma forma de preservar as histórias do meu povo.''
Isolado na aldeia, ele mostra preocupação com o avanço da pandemia. Entretanto, afirma que esse é um obstáculo que se soma a outros. ''Hoje, o Brasil encara dois problemas: o coronavírus e o governo atual. Essa doença pode exterminar o nosso povo, mas sabemos que o governo também pode fazer isso, e de uma forma muito mais rápida.''
''Então, o que a gente tem feito é intensificar o uso de nossos remédios, que funcionam como forma de prevenção ao vírus. Eles possuem propriedades curativas, e a gente acredita muito neles. Quanto à luta, continuamos resistindo dentro da aldeia e divulgando a nossa causa na internet. Não temos tempo de descansar ou parar.''
Raoni acusa Bolsonaro de
se aproveitar da pandemia
O novo coronavírus, que atinge mortalmente o Brasil, não poupa os indígenas da Amazônia. Seu porta-voz emblemático, o cacique Raoni, de 90 anos, acusa o presidente Jair Bolsonaro de querer "se aproveitar" para eliminar seu povo.
De origem kayapó, Raoni menciona "a precariedade do atendimento da saúde" ao seu povo, cujo índice de mortalidade é duas vezes maior que o do restante da população. O cacique está confinado na aldeia de Metuktire, no Mato Grosso. "Só vou sair da aldeia quando normalizar tudo", disse, em entrevista por chamada de vídeo.
A ONG francesa Planète Amazone (Planeta Amazônia) promoveu uma campanha de arrecadação para assegurar o confinamento das comunidades indígenas. Mas 10 toneladas de alimentos básicos e produtos de higiene destinadas aos kayapós permaneceram bloqueadas durante três semanas, segundo a Planète Amazone, cujo presidente, Gert-Peter Bruch, denunciou "um excesso criminoso de burocracia". Com a falta de produtos, os indígenas precisam ir até as cidades se abastecer.
Da mesma forma, o fornecimento de medicamentos pelas ONGs a indígenas foi complicado por uma circular de Brasília, em 20 de maio. Segundo a Associação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), ao menos 211 indígenas morreram de COVID-19, num total de 2.178 contágios.
A pandemia impediu Raoni de ir a Brasília para defender outra causa essencial dos indígenas: a delimitação de suas terras. O cacique queria se reunir com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma instrução normativa editada recentemente pela Funai autoriza com efeito imediato o desmonte de 237 terras indígenas que não tinham sido ainda delimitadas por decreto presidencial. Trata-se de terras do tamanho do território de Portugal, que podem ser ocupadas e desmembradas.
"Não! Isso não pode acontecer! Nossa terra não pode ser ocupada pelos invasores", diz o cacique, referindo-se a fazendeiros, madeireiros e garimpeiros ilegais. "Ele (Bolsonaro), como presidente, tem que demarcar as terras que ainda não foram demarcadas para que meu povo possa ali viver e se sentir bem." (AFP)