Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, em março passado, a indústria da música ao vivo parou, sem previsão de retorno. Esse cenário se repetiu no mundo inteiro, atingindo artistas iniciantes e os maiores gigantes do palco. Imediatamente, as lives foram a solução encontrada para manter o setor ativo, numa maneira de preservar a conexão entre artistas e seu público, arrecadar doações e, no caso de alguns, continuar ganhando dinheiro durante o período de quarentena.
Após 120 dias de isolamento, as lives se tornaram parte da agenda do público de música, foram feitas em diferentes plataformas e formatos, chegaram às emissoras de TV e devem continuar, até que os eventos presenciais voltem a ser uma opção segura, o que, segundo muitas previsões, somente vai ocorrer no ano que vem.
No Brasil, o primeiro marco dessas transmissões ao vivo ocorreu em 28 de março, quando o sertanejo Gusttavo Lima lançou o show Buteco em casa, pelo YouTube. Na primeira edição, o sertanejo ficou no ar ao longo de cinco horas. Além de arrecadar toneladas de alimentos e uma boa quantia de doações em dinheiro, as lives do cantor também receberam uma enxurrada de críticas em razão da quantidade de palavrões proferidos e pelo consumo exacerbado de bebidas alcoólicas.
Diante disso, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) entrou com uma representação ética contra o cantor e também contra um de seus patrocinadores. Superproduzidas e com cenários elaborados, essas lives também geraram controvérsia por reunir uma equipe técnica nada enxuta para a realização, contrariando duas das principais recomendações para se evitar a disseminaçã do vírus, que são evitar aglomerações e manter o distanciamento social.
CENSURA
No auge da polêmica, Gusttavo Lima anunciou que suspenderia a agenda de lives, para não ser “censurado”. “Acho que uma live engessada e politicamente correta não tem graça”, escreveu ele em um rede social. “O bom são as brincadeiras, à vontade, levar alegria e alto astral para as pessoas que estão agoniadas nesse momento.”
Pouco tempo depois, o cantor voltou atrás e hoje é considerado o responsável por inflacionar as lives sertanejas, tanto no quesito estrutura quanto no que diz respeito ao cachê.
A advertência do Conar contra Lima se refletiu nas apresentações de grande parte dos artistas sertanejos. Embora elas, em geral, ainda sejam patrocinadas por marcas de cerveja, os cantores e cantoras não aparecem ingerindo bebidas alcoólicas enquanto se apresentam – ou, pelo menos, não estimulando o consumo delas.
Uma live da dupla Jorge e Mateus ganhou inesperado tom político, ao contar com a aparição do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Em determinado momento do show on-line realizado no início de abril, os cantores exibiram um vídeo de Mandetta reforçando a necessidade de as pessoas ficarem em casa durante a pandemia.
A aparição surpresa gerou animosidade na relação entre o presidente Jair Bolsonaro e o chefe da pasta da Saúde, que foi demitido do cargo poucos dias depois, substituído pelo oncologista Nelson Teich, que ficou no Ministério entre 17 de abril e 15 de maio, sendo substituído pelo atual ministro interino Eduardo Pazuello.
PADRÃO
As lives sertanejas também contribuíram para elevar os padrões de exibência dos brasileiros. Anunciada como a “live das lives”, a One world: Together at home, capitaneada por Lady Gaga, decepcionou por trazer uma série de artistas se apresentando em casa, diante de uma câmera, sem grandes cenários. O programa reforçou a necessidade de seguir as recomendações da Organização Mundial (OMS) para conter a disseminação do vírus.
O exemplo dado por nomes como Andrea Bocelli, Chris Martin, Elton John, Paul McCartney e Stevie Wonder não passou batido e movimentou as redes sociais.
O norte-americano Charlie Puth, por exemplo, chamou a atenção por não se dar ao trabalho de arrumar a própria cama para se apresentar. Já o baterista dos Rolling Stones, Charlie Watts, provou que não tem uma bateria em casa e improvisou para a performance remota com os colegas de banda.
Outro aspecto que chamou a atenção foi o fato de as apresentações terem sido gravadas e não transmitidas ao vivo. Desde que o formato virou tendência, os fãs têm valorizado o fato de estarem on-line, de forma simultânea, com seus ídolos, o que não ocorreu na “live das lives”. Ainda assim, o festival que durou oito horas, foi capaz de arrecadar US$ 127,9 milhões destinados aos profissionais da saúde.
Quem deu um tom totalmente caseiro para a sua live foi Ivete Sangalo, que se apresentou de pijama, dentro de casa, contando com a ajuda do marido, Daniel Cady, e do filho Marcelo, de 10 anos.
O figurino despojado não impediu que a cantora baiana promovesse um verdadeiro Carnaval na sala de estar da casa. Com direito a uma “plateia” de brinquedos e ursos de pelúcia, a apresentação inaugurou o Em casa, programa de lives transmitido pela Globo, Globoplay e Multishow.
Comprovando o poder de influência dessas apresentações, o pijama usado pela cantora esgotou após o show.
REI
Quem também ganhou as telas da Globo para que o público pudesse matar as saudades de seus shows foi Roberto Carlos. No canal, o cantor se apresentou em duas ocasiões: em seu aniversário, no dia 19 de abril, e no Dia das Mães, celebrado neste ano em 10 de maio.
Transmitida diretamente de seu estúdio, localizado no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, a apresentação foi recheada com os tradicionais sucessos do cantor, além de passar uma mensagem de esperança em tempos tão conturbados.
Outra que decidiu abrir sua casa para comemorar o aniversário foi a funkeira Ludmilla, que levou um tombo e caiu em uma piscina enquanto fazia um cover de Planos impossíveis, música de Manu Gavassi. Após garantir que não havia se machucado, a cantora deu uma leve bronca em sua equipe e virou o meme daquela semana.
É certo que, atualmente, as lives passam pelo desafio de se reinventar. A fase experimental ficou para trás, e o público está cada vez mais exigente com essa nova forma de consumir shows. Para os artistas do mainstream, o obstáculo agora é manter os patrocinadores e o marketing de influência em alta. Para os menos famosos, o desafio é conseguir monetizar as apresentações, ainda que elas não acumulem grandes índices de visualização.
A RAINHA DAS LIVES
Desde o mês de março, a cantora e compositora carioca Teresa Cristina (foto) comanda diariamente, em seu Instagram (@teresacristinaoficial), as lives mais animadas do Brasil. A cada noite, a cantora destila um tema e recebe uma variedade de convidados, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Bebel Gilberto Gil, Alcione, Marisa Monte, entre outros. Ao longo de uma hora, ela conversa com todos, retoca o batom, toma cerveja e “apresenta” seu programa diário. No papel de quem verdadeiramente tem mantido o fôlego das lives, a artista impressiona pela assiduidade e, também, pelo carisma.