“Você tem que ser minha inimiga para contar a minha história?”, foi o que Daniela Arbex ouviu de Isabel Salomão de Campos, em janeiro de 2018. A jornalista juiz-forana convivia havia 30 anos com a médium. Tanto por isto, confidenciou-lhe naquele momento que tinha vontade de escrever um livro sobre ela, mas que a proximidade entre as duas era um impeditivo.
A resposta simples e clara da mulher mais experiente, que chega aos 96 anos no próximo dia 22, acabou por convencer Daniela a se dedicar ao projeto. Os dois mundos de Isabel (Intrínseca) é a primeira biografia da jornalista. É também o primeiro trabalho de Daniela em que ela revela aos leitores uma história feliz, a despeito das dificuldades que sua biografada enfrentou ao longo da vida.
“Terminei Todo dia a mesma noite (2017, sobre as vítimas do incêndio na boate Kiss) em frangalhos. Tinha 10 quilos a mais, perdi a metade dos cabelos. A carga emocional foi tão forte no processo de escrita do livro que eu precisava me refazer. A história da dona Isabel também me permitiu abordar com outro viés o jornalismo. Fica parecendo que eu só falo de tragédia. Não, falo de qualquer coisa, desde que a história tenha significado”, afirma a autora.
Até então, Daniela Arbex tinha três livros-reportagem publicados. Holocausto brasileiro (2013), o que teve maior repercussão entre eles, sobre o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como Colônia, onde milhares de pessoas morreram por maus-tratos no século 20; Cova 312 (2015), sobre como as Forças Armadas mataram um militante político durante a ditadura militar brasileira, forjaram seu suicídio e sumiram com o corpo; além do já citado volume com narrativas inéditas sobre o incêndio que matou 242 pessoas em 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
"Terminei Todo dia a mesma noite (2017, sobre as vítimas do incêndio na boate Kiss) em frangalhos. Tinha 10 quilos a mais, perdi a metade dos cabelos. A carga emocional foi tão forte no processo de escrita do livro que eu precisava me refazer"
Daniela Arbex, jornalista e escritora
DESAFIO
Sob este aspecto, Os dois mundos de Isabel é um ponto fora da curva na trajetória da jornalista. “Não foi um desafio emocional, como foram os outros. Mas foi um desafio dar conta de uma história que tivesse viés, de uma maneira absolutamente jornalística e isenta. Não é um livro para convencer ninguém sobre nada, é só a visão dela sobre os dois mundos”, afirma Daniela.
Os dois mundos de que fala o título são o físico e o espiritual, que, para Isabel, só passaram a conviver em harmonia na idade adulta, depois que ela chegou aos 20 anos. Segunda filha mulher dos 10 rebentos do casal de imigrantes libaneses Chaíde e Nagib Salomão, Isabel sabia que era diferente desde criança. Mas não conseguia entender como.
Nascida em Rochedo de Minas, pequeno município na região de Juiz de Fora, em 22 de setembro de 1924, foi criada na Fazenda da Forquilha, que seu pai mantinha nas proximidades de Guarará, outra cidade minúscula daquela região. Suas manifestações mediúnicas começaram a aparecer quando ela tinha 9 anos.
Cursou somente até o quarto ano primário (hoje a primeira metade do Ensino Fundamental), mas, já no início da adolescência, demonstrou uma preocupação constante com o outro. Tinha 14 anos quando decidiu, por sua conta e risco, que as crianças filhas dos trabalhadores rurais tinham que saber ler e escrever. Montou, com a anuência do prefeito de Guarará (a despeito do ceticismo inicial), uma escola para 45 crianças em sua própria casa. Aos 14, ela se tornou professora.
A mudança da família para Juiz de Fora levou Isabel a trabalhar em uma empresa de fabricação de queijos. Foi naquela cidade que ela começou a entender que as visitas que tinha desde a infância eram de espíritos – em certo momento, chegou a se considerar louca. Já consciente de sua mediunidade, começou a desenvolver, com o marido, Ramiro de Campos, um trabalho espiritual.
Em 1974, o casal fundou a Casa do Caminho, centro espírita ativo até hoje. Entre outras iniciativas de Isabel estão o Lar do Caminho, instituição que tirou das ruas mais de 500 meninos. Com as portas de sua casa abertas a todos que precisavam de ajuda, ainda criou a família: filhos, netos e bisnetos.
Daniela descreve tal trajetória de maneira precisa e acessível. A escrita mantém a mesma fluidez dos livros anteriores. Mas, se em Todo dia a mesma noite pausas eram necessárias diante da angústia que a narrativa provocava, em Os dois mundos de Isabel a leitura flui de uma tacada só.
“Um jornalista que conhecesse a dona Isabel agora não teria meios para contar a história dela, porque ela não tem mais condições físicas para tal, em razão das limitações da idade”, afirma Daniela, referindo-se ao processo de entrevistas que deu origem ao livro. Durante um ano, a jornalista visitou dona Isabel todas as noites para ouvir sobre a sua trajetória.
“Mas aquilo foi o ponto de partida. Eu precisava buscar as pessoas que ela citava, e ela falava de gente que não sabia sequer o sobrenome”, conta a autora. Ainda que seja uma obra centrada em uma personagem, Os dois mundos de Isabel consumiu a mesma pesquisa jornalística que Daniela empreendeu nos livros anteriores.
“O livro tem 100 personagens com nome e sobrenome. Para escrevê-lo, ouvi mais de 150 pessoas, o mesmo número que ouvi para fazer a pesquisa sobre a boate Kiss. Foi um processo longo, tive que reencontrar o cenário da infância dela, resgatar histórias antigas. Na verdade, é a história da vida dessa mulher singular que tem como pano de fundo a história do Brasil”, comenta Daniela, que contextualiza a história de Isabel de acordo com os sucessivos períodos marcantes para o Brasil: o Estado Novo, a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, a ditadura militar, a Constituição de 1988.
VOLUNTÁRIOS
Ainda que esteja há quatro anos afastada dos trabalhos na Casa do Caminho em virtude de sua idade, dona Isabel continua ativa. Uma equipe multidisciplinar mantém em atuação permanente todos os projetos que ela criou.
“Durante a pandemia, por exemplo, ela reuniu uma rede de voluntários e conseguiu que uma empresa de motoboys levasse mantimentos para manter ativo um projeto de distribuição de alimentos. Como não há condições de haver neste momento reuniões públicas na Casa do Caminho, foi criada uma live, toda sexta-feira, que tem tido uma audiência incrível. Ela não para. O que me encanta é a força dela para estar sempre pensando em como levar o bem.”
Findo este livro, Daniela conta que já tem dois outros projetos na manga. Um de seus trabalhos anteriores teve os direitos adquiridos para ser adaptado ao formato de minissérie. Mais sobre o assunto ela não pode adiantar.
“O jornalismo não nos limita, ele tem mil possibilidades. Vou entrar na área da ficção, mas baseada em uma história real. No final das contas, o que importa, seja em que formato for, é chegar ao outro por meio da escrita, mostrando algo que tenha sentido para as pessoas. No momento em que estamos, este livro vem para trazer amor, coragem, bons exemplos. Ele devolve a esperança.”
OS DOIS MUNDOS DE ISABEL
Daniela Arbex
Intrínseca (304 págs.)
R$ 39,90 (livro) e R$ 19,90 (e-book)