Com o isolamento social provocado pela pandemia, os dias se tornaram semelhantes e os meses ganharam o aspecto de um bloco, sem grandes distinções. Tal situação torna ainda mais bem-vindo o Almanaque do Marcelo e da turma da nossa rua (Salamandra), da escritora Ruth Rocha e de sua filha, Mariana Rocha, destinado ao público jovem.
Trata-se de um exemplo típico desse gênero literário, ou seja, com os meses do ano determinando o início de cada capítulo, são apresentadas curiosidades históricas e geográficas, além de particularidades de cada mês.
PANDEMIA
“É uma forma de mostrar como cada dia é precioso e carrega uma história só sua”, comenta Ruth, que, aos 89 anos, mantém-se firme na ativa como uma das mais importantes escritoras para crianças do Brasil. “O curioso é que Mariana e eu começamos o trabalho no ano passado, quando ainda não se pensava em pandemia. Na época, acreditávamos apenas que era uma boa ideia, mas, com o lançamento acontecendo agora, o livro ganhou uma outra importância.”
A obra é fiel ao espírito dos almanaques, reunindo curiosidades educativas que também são divertidas. São informações como a que mostra que o Brasil não tem a maior floresta do mundo, mas, sim, a maior praia, ou que um em cada 10 habitantes da Ásia Central é descendente do imperador mongol Gengis Khan. Há ainda conselhos preciosos, como dicas para reciclar papel em casa.
Ruth conta que a pesquisa não foi tão árdua, pois coleciona informações há muitos anos. “Quando comecei na revista Recreio, em 1969, já guardava esses dados, tarefa iniciada quando trabalhei no Colégio Rio Branco, em São Paulo, como orientadora vocacional.” O que despertou o interesse dela foi um trabalho científico divulgado na época, mostrando como esse tipo de informação auxilia a evolução neurológica da criança, preparando-a para a maturidade.
Com 200 títulos publicados em quase 50 anos, Ruth Rocha ganhou notoriedade ao valorizar a criança como ser inteligente e dotado de espírito crítico. O mundo criado por ela está distante do universo das fábulas e sua rígida divisão entre bons e maus – são borboletas coloridas, reizinhos mandões e meninos que criam palavras esquisitas. Tipos que, por meio de uma linguagem lúdica e direta, passam noções de igualdade racial, democracia e liberdade de expressão.
Para o almanaque, ela escolheu o personagem do livro Marcelo, marmelo, martelo, o menino que, de uma hora para outra, decide reinventar os nomes das coisas, trocando leite por “suco de vaca” e cadeira por “sentador”.
“É o livro do qual os leitores gostam mais, o mais lido. Por isso, juntei todos os personagens da turma da nossa rua e fiz com eles muitas brincadeiras, piadas, histórias e versos”, explica Ruth, que pela primeira vez trabalha com a filha, Mariana, a primeira leitora e também curadora de sua obra. “Temos um bom diálogo, eu 'traduzo' os textos dela para o 'criancês'.”
Próxima dos 90 anos, que completa em março, a escritora não pensa em aposentadoria – já trabalha, aliás, no próximo livro, que terá macacos como protagonistas. “Há quem não goste desses bichos e até negue nossa descendência dessa espécie, mas são animais muito espertos, que nos ajudam a entender a alma humana”, diverte-se.
TOLSTóI
Em seu apartamento, em São Paulo, Ruth trabalha em seu ritmo. Com a pandemia, não saiu mais de casa. “Apenas quando tenho alguma consulta”, conta ela. “Como já não enxergo muito bem, o que dificulta a leitura, uma das minhas irmãs – tenho duas, Rilda e Eliana – me telefona todos os dias para ler, durante uma hora, trechos de obras clássicas. Já lemos até Guerra e paz”, revela. A monumental obra de Tolstói tem 1.225 páginas.
A escritora acompanha com atenção o noticiário político. “O governo vem provocando muito estrago”, observa, dizendo que pretende votar na eleição municipal, em novembro. “Por ora, só sei em quem não votar”, afirma, revelando que não se interessa em escrever obras políticas hoje. “A situação está muito penosa e a criança precisa de esperança”, conclui. (Estadão Conteúdo)
ALMANAQUE DO MARCELO E DA TURMA DA NOSSA RUA
. De Ruth Rocha e Mariana Rocha
. Editora Salamandra
. 128 páginas
. R$ 59