Em 1993, Ana Rodrigues era uma estudante de 16 anos do Colégio Técnico da UFMG (Coltec) quando convidou o colega Juliano Viana para ir ao cinema. Ainda que tivessem amigos em comum, os dois nunca haviam se falado. Ele aceitou na hora o convite para assistir a Traídos pelo desejo (1992), do irlandês Neil Jordan, filme-sensação da época, no Cine Belas Artes.
Foram de ônibus da Pampulha até o bairro de Lourdes, e Juliano ainda teve que esperá-la assistir a uma aula de inglês no Icbeu, bem ao lado do cinema, na Rua Gonçalves Dias. Essa foi a primeira de várias idas que os dois – que se tornaram amigos, em seguida engataram um namoro e por fim se casaram, em 2002 – fizeram juntos àquele cinema. Desde novembro passado, ela, professora, e ele, cientista da informação, vivem com as filhas Alice e Sofia em Toronto, no Canadá.
Quando soube da campanha de financiamento coletivo SOS Belas BH – Não deixe o Cine Belas Artes fechar, Ana decidiu apoiá-la. Escolheu como recompensa pelo R$ 1 mil doado ter o seu nome e o de Juliano bordados em uma das poltronas da Sala 1.
“Temos um grande amor por aquele cinema”, conta ela, que já combinou com seus pais que, caso não esteja em BH quando sua poltrona for “inaugurada” (a previsão é abril de 2021), eles devem ir lá para fazer a foto.''Você sempre se julga amado, e estou falando não de mim, mas do cinema. Mas precisa ter uma demonstração disso. A resposta foi fenomenal''
Adhemar Oliveira, proprietário do Cine Belas Artes
SURPRESA
O exibidor Adhemar Oliveira, proprietário do Cine Belas Artes, confirma que uma das poltronas trará bordado em reconhecimento ao casal Ana e Juliano. Dono de outros nove complexos de cinema situados no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília, Curitiba e Porto Alegre, Oliveira foi surpreendido pela rapidez de adesões da campanha mineira. “Você sempre se julga amado, e estou falando não de mim, mas do cinema. Mas precisa ter uma demonstração disso. A resposta foi fenomenal.”
Nesta quarta (7), a campanha SOS Belas BH, na plataforma de financiamento coletivo Benfeitoria, chega ao seu décimo dia. Só na primeira semana, ela cumpriu 91% de sua meta, o que fez com que se tornasse referência da própria plataforma, conta Oliveira. Atingida a meta desta primeira fase, a campanha pula diretamente para a segunda.
Os primeiros R$ 200 mil serão direcionados para a cobertura das despesas funcionais, garantindo que o espaço não feche. A segunda fase, também com R$ 200 mil previstos, tem como objetivo a renovação do interior das três salas, incluindo a troca das poltronas. Já a terceira e última fase, de R$ 100 mil, é voltada para a modernização dos equipamentos de exibição. A intenção do exibidor é encerrar a campanha no próximo dia 28.
“Não estou vendo só o período que ficou para trás, já que pensamos que em três meses (desde março, quando foi declarada a pandemia) os cinemas iriam reabrir. O processo de reabertura vai ser problemático. O protocolo diminui a ocupação (que deve ser de 40% da lotação), os filmes estão com lançamentos desorganizados, as pessoas têm medo... E as salas independentes são as que mais estão sofrendo, já que as que têm patrocínio estão, de certa forma, ancoradas”, afirma Oliveira.
RECOMPENSAS
Até este momento, todos os apoiadores da campanha são pessoas físicas (pouco mais de 2 mil pessoas), que doaram entre R$ 30 e R$ 1 mil (a procura foi tanta que foram criadas, nesta semana, novas cotas de premiação e recompensas). A maior cota, de R$ 10 mil, destinada a empresas para veiculação de comerciais antes de todas as sessões durante três meses, ainda não teve nenhum apoiador.Oliveira comenta que está em diálogo com três empresas mineiras para um possível patrocínio (em valor maior do que o oferecido pelas cotas da campanha).
A campanha do Belas Artes é a que ganhou mais visibilidade e número de apoiadores, mas há várias iniciativas do gênero em torno de grupos e espaços culturais de BH que estão com dificuldade de sobreviver, seis meses e meio depois de iniciada a quarentena.
Outro espaço tradicional de Belo Horizonte que está com o futuro ameaçado é o bar A Obra, há 23 anos considerado o melhor inferninho não só desta cidade, como de tantas outras. A casa noturna na Savassi já entrou na quarentena em desvantagem.
Em 7 de fevereiro, A Obra foi interditada pelo Corpo de Bombeiros. Após realizar uma série de adequações exigidas pela corporação, a casa reabriria em 13 de março passado, precisamente na semana em que a pandemia foi declarada pela Organização Mundial de Saúde.
Já no início da quarentena foi realizada a campanha Vaka sem lei – A Obra resiste, pela plataforma Vakinha. Naquele momento, foram pedidos R$ 10 mil para arcar com os custos (a meta foi batida e a campanha arrecadou R$ 11.810). Muitos meses mais tarde, com todos os funcionários demitidos (seis contratados via CLT, três com contratos temporários e sete indiretos, que atuavam como seguranças), os sócios tiveram que fazer um empréstimo de R$ 240 mil.
Sem a menor possibilidade de reabrir, uma das alternativas seria incluir A Obra na Lei Aldir Blanc (Lei Federal 14.017/2020), de ajuda emergencial para a área cultural. Além de artistas, a lei também beneficia espaços culturais, com parcelas que vão de R$ 3 mil a R$ 10 mil.
''Uma das primeiras exigências é que você tenha funcionários, coisa que não temos mais. E pró-labore não pode entrar. Nossos custos estão baixos atualmente (o aluguel, por exemplo, foi suspenso), mas a dívida no banco que fizemos para saldar as dívidas (anteriores) é monstruosa. É uma situação complicada''
Marcelo Crocco, sócio d'A Obra, sobre a Lei Aldir Blanc
EXIGÊNCIAS
Um dos três sócios d’A Obra, Marcelo Crocco afirma que não sabe mais se irá entrar na lei. “Uma das primeiras exigências é que você tenha funcionários, coisa que não temos mais. E pró-labore não pode entrar. Nossos custos estão baixos atualmente (o aluguel, por exemplo, foi suspenso), mas a dívida no banco que fizemos para saldar as dívidas (anteriores) é monstruosa. É uma situação complicada”, diz ele, acrescentando que a Lei Aldir Blanc (regulamentada somente em 18 de agosto) demorou muito para quem está fechado desde o início do ano.Crocco afirma que, em breve, irá lançar nova campanha de financiamento coletivo “para tentar amortizar as dívidas que fizemos”. Por ora, para gerar um caixa mínimo, está sendo vendido o estoque de bebidas da casa. “Estamos fazendo lives nas quintas e sextas; e festas (virtuais, com cobrança de ingresso) aos sábados para manter o nome d’A Obra, pois precisaremos de muita ajuda para reabrir.”
Outra casa do underground belo-horizontino que lançou recentemente uma campanha de financiamento coletiva foi a Matriz, que conseguiu, até 30 de setembro, R$ 52.355,38 dos R$ 47,5 mil pedidos para a manutenção do espaço, localizado no térreo do Edifício JK, no Santo Agostinho.
O montante será utilizado para arcar com custos de manutenção, bem como para a produção do evento comemorativo de duas décadas da Matriz, completados neste ano – a festa ocorrerá só quando for possível.
PLATAFORMAS
As campanhas de financiamento ocorrem por diversas plataformas. A Evoé, que é mineira, concentra várias delas. Além da campanha pontual, existem também as chamadas recorrentes, que ocorrem como uma assinatura mensal. O Centro Cultural Lá da Favelinha e o Espaço Comum Luiz Estrela, ambos no bairro São Lucas, são adeptos do Evoé há alguns anos.Com o fechamento dos espaços em decorrência da pandemia, foram criadas campanhas mais abrangentes, com metas maiores. O Luiz Estrela, que tem 50 assinantes mensais, pede R$ 3,2 mil para arcar com as contas básicas do espaço e também para sua manutenção, já que o casarão antigo sofreu com as chuvas do início do ano e precisa ter parte dos telhados trocada.
Já o Lá na Favelinha aumentou a meta, por causa da pandemia, de R$ 2 mil para R$ 10 mil por mês. “A campanha visa pagar um auxílio para nossos colaboradores, de R$ 200 a R$ 800, valor que é proporcional às diárias que trabalham, já que não temos funcionários, todo mundo é free lancer”, conta Kdu dos Anjos, idealizador do centro cultural. Nesta pandemia, o Lá na Favelinha já bateu duas vezes a meta.
Arnaldo Baptista faz rifa de casaco
Não é financiamento coletivo, é rifa mesmo, só que virtual. Arnaldo Baptista, de 72 anos, lançou uma rifa do casaco inglês battle dress que está na capa do disco Singin’ alone (1981), com a intenção de garantir alguma receita que faça frente às suas despesas nesta quarentena.
Adquirido por ele em Portobello Road, a tradicional feira de rua de Londres, durante uma viagem com os Mutantes, o modelo é inspirado nos uniformes de setores do Exército inglês. Os Beatles usaram casacos semelhantes, só que longos, na capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). O casaco foi exposto na mostra Transmigração (2016), dedicada à trajetória do artista, na Caixa Cultural São Paulo.
A rifa tem 2 mil números (R$ 50 cada um). O sorteio acontecerá quando pelo menos 80% deles tiverem sido vendidos.
Coleção de pinturas, desenhos e assemblages de Arnaldo também estão à venda, com 30% de desconto do valor de tabela. Nos trabalhos selecionados há ainda a produção realizada em papelão durante a quarentena. Mais informações pelo e-mail arnaldobaptista9@gmail.com.