Antes mesmo do início da pandemia, a bailarina e coreógrafa Deborah Colker teve de lidar com outro problema de saúde e com o isolamento.
Em meio a uma rotina intensa de ensaios, ela foi diagnosticada com sarampo, assim como oito bailarinos da companhia que leva seu nome. Ao sair do hospital, depois de quatro dias internada, veio a notícia do novo coronavírus.
No momento, a companhia se prepara para estrear o espetáculo Cura, em março de 2021, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. "O que está me salvando como pessoa é fazer o Cura", diz Deborah. "Tem que nascer", conta, referindo-se ao longo processo que já marca o trabalho. Na entrevista a seguir, ela ainda avalia a força que a dança vem ganhando nas redes sociais: em sua visão, a internet "gera uma dinâmica de comunicação muito legal", mas também tem seu lado negativo.
Você lidou com um início de ano bastante turbulento, contraiu sarampo. Como foi?
Sou judia e agora a gente está na época dessas datas importantes, ano novo, brinquei que 2020 já passou, porque já estamos em 5781. O sarampo acho que foi confusão da minha mãe; quando criança, meus irmãos tiveram e eu não devo ter tido. Oito pessoas da companhia tiveram, foi quando eu peguei. Fiquei internada quatro dias. Fiquei muito mal. Carlinhos Brown está fazendo a trilha do meu novo espetáculo, Cura. Eu tinha ido para Salvador encontrá-lo, foi um dia intenso. Voltei no domingo, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e no dia seguinte, eu já estava no hospital. Quando eu saí, pensei: "Voltei ao mundo". Aí o (rabino) Nilton Bonder, que faz o novo espetáculo também, falou: "Pena que o mundo acabou".
"Carlinhos Brown está fazendo a trilha do meu novo espetáculo, Cura. Eu tinha ido para Salvador encontrá-lo, foi um dia intenso. Voltei no domingo, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e no dia seguinte, eu já estava no hospital (com sarampo). Quando eu saí, pensei: 'Voltei ao mundo'. Aí o (rabino) Nilton Bonder, que faz o novo espetáculo também, falou: %u2018Pena que o mundo acabou"
DEBORAH COLKER, BAILARINA E COREÓGRAFA
Era o início da pandemia. Como foi assimilar tudo?
Ninguém estava entendendo direito. De cara, a gente parou um mês. Tínhamos uma agenda intensa este ano. Íamos entrar numa turnê de seis cidades, com Cão sem plumas. Eu estava fazendo um espetáculo para os 250 anos de Beethoven para um festival na Alemanha. Ninguém sabia quanto tempo a quarentena duraria. Falavam em adiar a turnê para o dia tal, mas já se passaram seis meses e meio e a gente continua numa incerteza.
E como ficaram os ensaios?
Em março foi um susto: saindo do sarampo, fecha escola, cancela turnê... Paramos um mês e aí a gente começou a entender que a pandemia duraria mais tempo. Nesse mês, pouco a pouco, tudo foi cancelado. Alemanha cancelou. Éramos patrocinados pela Petrobras até o ano passado, estávamos fechando novos contratos. Em um mês, tudo foi suspenso. O que a gente faz? Fecha a companhia até poder voltar? Não, vamos continuar, estamos fazendo Cura, temos de resistir. Em 15 de abril, começamos com o Zoom. É exaustivo, extenuante: cada um tem uma internet, um tamanho de casa, uma situação. É uma situação pandêmica em todos os sentidos.
Deu para reorganizar a programação?
Consegui manter (a preparação para) três espetáculos: Cão sem plumas, Cura e Rota, que é um espetáculo muito preciso, rigoroso, de muito detalhe do gesto. Em 15 de maio, ainda não tinha nenhuma resposta. Em 15 de junho, comecei a pensar: a gente vai fazer mais um mês assim e tem de entender que a dança é algo essencial. Não só na vida do artista, que trabalha com isso, mas para as pessoas, que precisam cuidar da alma. Comecei a olhar todos os protocolos, as fases, como faz, como não faz. Nesse meio tempo, fiz algumas ações on-line bem bacanas. Um minidocumentário sobre o Cura. O Carlinhos (Brown) fez uma música linda, com imagens do último ensaio presencial, em 6 de março. Pegamos essas imagens, incluímos entrevistas, com imagens do dia em que fui a Salvador. Depois fiz um vídeo com Beethoven. Deu um trabalho do cão, mas não podíamos fazer qualquer coisa. Até que, em 15 de julho, começamos a nos encontrar três vezes por semana.
Você falou que a arte é essencial não só para os artistas. Como avalia a importância da dança para as pessoas em geral neste momento?
Nosso corpo é a nossa casa. E a dança tem um poder expressivo de comunicação. De tirar o que está lá dentro de você, escondido e incompreendido, e expressar através do movimento. A gente reabriu as escolas e estou sentindo isso principalmente para as crianças e os adolescentes.
"Em 15 de abril, começamos (os ensaios) com o Zoom. É exaustivo, extenuante: cada um tem uma internet, um tamanho de casa, uma situação. É uma situação pandêmica em todos os sentidos"
DEBORAH COLKER, BAILARINA E COREÓGRAFA
Uma forma de respiro, né?
O que está me salvando como pessoa é fazer o Cura. Já são dois anos e nove meses. Era para estrear em 21 de janeiro no Southbank Centre, em Londres. Agora vamos estrear em março, no Municipal do Rio de Janeiro. Tanta incerteza, tudo tão difícil. Mas estou há 38 anos trabalhando com dança e tenho muitas certezas do caminho que a arte e o corpo têm. De como a cultura é a identidade de uma sociedade, de uma cidade, de uma tribo e também das individualidades. Estou aqui na minha intensidade, buscando finalizações como figurino, luz. Carlinhos vem ver o ensaio e eu devo ir para Salvador. O Cura tem que nascer.
Quais lições que ficam?
A mais importante é lavar muito as mãos. Ter a consciência de que o mundo tem muita gente. Todo cuidado é pouco. Quem diria que algo que aconteceu na China iria nos atingir. Eu não sou da linhagem de que o mundo vai ficar melhor; não tenha essa positividade. A gente tem memória curta. Mas a cura está lá dentro de cada um. A gente não pode ter essa visão de que alguém vai resolver, a Organização Mundial de Saúde, o governo. Todo mundo tem responsabilidade. Mas não é uma pandemia que faz o ser humano ficar melhor. Uma coisa eu percebi: eu não vivo sem dança, sem arte, tenho certeza absoluta disso.
Como tem visto a força que a dança vem ganhando em redes sociais como o TikTok?
Como tudo, essas plataformas têm um lado bom e outro ruim. A internet gera uma preguiça, um cansaço, mas também uma dinâmica de comunicação muito legal. Se você pensar que recebo vídeos de uma menina dançando na rua no Brooklyn, é genial. A facilidade com que você filma, que faz um vídeo com celular… É maravilhoso. Já vi vários vídeos do TikTok muito bons. Tem uma galera que faz da rua o seu palco, que se comunica e troca repertório, vejo isso no Rio de Janeiro, nas favelas. É superdivertido, juvenil, interativo. Aquilo tem um poder incrível. Agora, dimensionar isso para algo maciço e achar que será suficiente, que tudo tem que ser Instagram, Facebook, live, não dá para viver em função disso. Muita gente me falou para filmar ensaio. Estou muito resistente, não quero. Já que vou me adaptar, os vídeos que fiz são pensados, com conteúdo.