Jornal Estado de Minas

CINEMA

Longa mineiro 'O lodo' estreia hoje na Mostra de SP

Não é fora da curva somente em sua própria carreira, mas também no percurso do cinema brasileiro. É dessa maneira que Helvécio Ratton, de 71 anos, define seu novo longa-metragem, O lodo. Rodado em 2019, em Belo Horizonte, com elenco mineiro, pronto desde janeiro passado, quando teve uma única exibição na Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme, atropelado pela pandemia do novo coronavírus, teve seu lançamento adiado de setembro para – quem sabe? – maio de 2021.





Mas na gaveta ele não está. Convidado para participar da Mostra Brasil, seção dedicada a títulos nacionais inéditos na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que tem início nesta quinta (22), o filme está disponível via streaming. Com limite de até 2 mil visualizações, O lodo poderá ser assistido pelo site mostra.org até 4 de novembro.

“No conjunto do cinema brasileiro, é raro um filme assim. Trabalho numa dimensão do fantástico à qual não estamos muito acostumados. A própria obra do Murilo Rubião (o filme é uma adaptação do conto homônimo que o escritor publicou em 1979) não tem paralelo. O realismo fantástico latino-americano de García Márquez é diferente. Murilo é mais irônico, sutil. Eu diria que ele faz um realismo fantástico mineiro, no sentido de que seus personagens têm suas esquisitices, estranhezas, com as quais me identifico muito. Vejo nós, mineiros, ruminando as coisas sozinhos, cada um carregando seu lodo próprio”, comenta o cineasta.  

O lodo acompanha a jornada rumo ao abismo de um homem absolutamente comum. Funcionário de uma companhia de seguros, Manfredo (Eduardo Moreira), sozinho, sem filhos, que leva uma vida sem maiores atrativos, começa a sofrer de depressão. Procura um psiquiatra, Dr. Pink (Renato Parara). Logo na primeira sessão, decide não dar continuidade ao tratamento. Quando o médico tenta voltar ao passado do personagem, ele se incomoda e se esquiva.


Mesmo decidido a dar um basta, Manfredo não consegue. É perseguido pelo Dr. Pink e sua secretária (Samira Ávila), que liga insistentemente para avisá-lo do horário marcado. Também em pesadelos o psiquiatra não o deixa em paz. O incômodo acaba se tornando físico, quando Manfredo começa a apresentar feridas no peito, de onde escorre um líquido negro, o lodaçal que ele carregava dentro de si, na opinião do médico. O cerco vai se fechando até que a chegada de Epsila (Inês Peixoto), mulher do passado de Manfredo, fecha o ciclo.



(foto: Bianca Aun/Divulgação)


ADAPTAÇÃO 

O projeto de adaptar Rubião era inicialmente para uma série. Foram trabalhados 13 roteiros e, quando veio a chance de filmar, Ratton escolheu O lodo “porque é pouco conhecido, uma pequena joia. E como sou formado em psicologia, trata-se de uma área em que transito.”

No cinema, O lodo se tornou um thriller psicológico, algo que Ratton nunca havia feito. Como realização, não tem pontas soltas – direção, elenco, fotografia, montagem, música e direção de arte dialogam o tempo inteiro. 

O filme é exibido na “janela clássica” (o formato quadrado da tela, usado na televisão até o início deste século) e hoje muito pouco adotado pelo cinema. Ainda que seja ambientada no mundo contemporâneo, a narrativa ganha um ar atemporal. Boa parte da história foi rodada na região central de Belo Horizonte, com destaque para o Edifício Itatiaia e a Praça da Estação. 





“Sempre que lia o conto, imaginava que era uma história para ser vista através de uma fresta. Então optamos por uma janela mais quadrada (4:33) para confinar ainda mais o personagem”, diz Ratton, que filmou pontos de vista distintos sobre Belo Horizonte. Há desde uma antiga mansão na Cidade Jardim, cenário do escritório do Dr. Pink, até uma passarela próxima ao Viaduto da Floresta que aparece em mais de uma cena.

(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)


GALPÃO 

Ratton sempre pensou em Eduardo Moreira como Manfredo. Aqui vivendo seu primeiro protagonista no cinema, o ator, um dos fundadores do Galpão, acabou trabalhando com boa parte de seus colegas no grupo. Cinco outros atores do Galpão estão em O lodo: Inês Peixoto, Teuda Bara, Paulo André, Antônio Edson e Fernanda Vianna. Rodolfo Vaz, ex-Galpão, também tem um papel. 

“É um filme que tem um tom de interpretação muito difícil. Estamos lidando com o absurdo, mas esse tipo de fantástico, na minha visão, só funciona num contexto realista. Não dá para fazer tudo absurdo, ou você perde o impacto. E a gente teria que filmar com muita rapidez, pois os recursos estão difíceis, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) paralisada. Isso nos exigiu filmar rápido e bem. Então, eu tinha que ter um elenco que já soubesse o que fazer”, afirma Ratton, que rodou o longa durante quatro semanas e meia.





Eduardo Moreira, em grande momento, está quase o tempo todo em cena. “O cinema exige uma imersão muito bonita. O que aconteceu ali fica para a frente, você tem que estar muito sintonizado a tudo. Já o teatro é o contrário, pois você pode reensaiar, refazer. Gosto de experiências intensas e acho ótimo não ter tido um preparador de elenco, que vira uma espécie de intermediário. Foi tudo feito pelo próprio Helvécio, que foi reescrevendo o roteiro a partir das nossas leituras.”

Moreira destaca ainda o fato de O lodo ser um filme de Belo Horizonte. “Mais do que mineiro, o Murilo Rubião é um autor belo-horizontino. É ainda um dos poucos que não foram embora, essa sina dos escritores mineiros. Fora de Minas, pouquíssima gente conhece o Murilo.” Ex-integrante do Uakit, o percussionista Paulo Santos assina sozinho a trilha sonora. Quase uma personagem da narrativa, ela vai pontuando o clima de claustrofobia que toma conta da vida de Manfredo.

Longa-metragem de número nove da carreira de Ratton, O lodo já vem sendo analisado como um filme da maturidade do cineasta. “Isso os outros percebem mais do que a gente. Talvez seja o filme em que eu domine todos os territórios. Belo Horizonte é a minha cidade, tive o elenco e as locações que quis e pudemos refinar a arte do filme, a luz. É um trabalho muito pensado, em todos os aspectos, e no qual eu estive mais no controle da narrativa.”





E O lodo, diante do (des) mundo em que estamos, ainda permite várias leituras. “Acho que o lodo não é exclusivamente do Manfredo. Estamos todos nele, seja no mar de lama de Minas Gerais, do abuso sexual, da violência contra mulheres, da destruição do meio ambiente, do cinismo do nosso governo frente à pandemia. O lodo que está escorrendo no Brasil está se acumulando dentro de nós”, afirma o cineasta. 


44ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO
Desta quinta (22) a 4 de novembro, no site www.mostra.org. Para assistir aos filmes, o espectador encontrará no site as plataformas Mostra Play, Sesc Digital e Spcine Play, onde poderá realizar o seu cadastro. Cada filme custará R$ 6. Os ingressos só podem ser adquiridos a partir desta quinta e as visualizações têm início às 20h. Após adquirido o ingresso, o espectador terá três dias para assistir ao título. Os filmes das plataformas Sesc Digital e Spcine Play são gratuitos.