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Livro traz Nelson Motta por ele mesmo, mas em terceira pessoa

Jornalista, compositor e produtor musical diz que se sentiu mais livre para 'botar para fora' as histórias como se fossem as de um personagem visto a distancia


23/10/2020 04:00 - atualizado 23/10/2020 07:44

Colecionador de amigos, aqui Nelson Motta se diverte em reunião com Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Braguinha (de costas)(foto: Sextante/Divulgação)
Colecionador de amigos, aqui Nelson Motta se diverte em reunião com Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Braguinha (de costas) (foto: Sextante/Divulgação)
Sorte não é mérito. Mas o que fazer com ela, sim. Nelson Motta, ao longo de seus quase 76 anos (serão completados no próximo dia 29), soube tirar proveito máximo do que o destino aprontou com ele. É em torno de sua fortuna – e mulheres, música, ídolos, família, drogas e viagens ao redor do mundo – que o jornalista, escritor, letrista e produtor musical escreveu a autobiografia De cu pra lua – Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte (Estação Brasil).

Para dar conta de tanta coisa, o autor se desprendeu de si mesmo. Escreveu na terceira pessoa de forma rápida, leve e divertida (até nos dramas ele encontra alguma graça). Mas não se aprofunda em coisa alguma, tanto que não se deve esperar uma continuação de Noites tropicais – Solos, improvisos e memórias musicais (Objetiva), o livro no qual repassa boa parte da história da MPB. Muitos dos temas tratados no volume de memórias de 20 anos atrás passam de raspão neste aqui. 

Na entrevista a seguir, Nelson fala como chegou ao Nelsinho, o protagonista de De cu pra lua, que estará nas livrarias a partir da próxima segunda-feira (26). 

''Eu fiquei muito mais livre para botar pra fora exatamente o que eu me lembrava daquele personagem. Ao me distanciar, pude criticar o personagem, fazer piada com ele. Me senti completamente independente do Nelsinho, tratei como se fosse um personagem de ficção que já veio pronto%u2019''

Nelson Motta, jornalista, escritor, letrista e produtor musical


Como jornalista, entrevistou grandes músicos, como Raul Seixas (1945-1989)(foto: Sextante/Divulgação)
Como jornalista, entrevistou grandes músicos, como Raul Seixas (1945-1989) (foto: Sextante/Divulgação)
Este título, numa época destas...
É uma bobagem, uma expressão corriqueira, de rua... Na verdade, é a primeira vez que tive a ideia do título primeiro, antes de escrever o livro. Em todos os outros, foi sempre um problema. Na última hora, quando o livro estava entrando na gráfica, tinha que escolher o título. 

Por que escrever sobre si mesmo na terceira pessoa?
Foi libertador. Claro que nunca me passou pela cabeça que sou um Pelé. O Nelsinho não é Pelé. Mas acho que é um personagem muito interessante contado de longe, visto 50, 70 anos depois. Eu fiquei muito mais livre para botar pra fora exatamente o que eu me lembrava daquele personagem. Ao me distanciar, pude criticar o personagem, fazer piada com ele. Me senti completamente independente do Nelsinho, tratei como se fosse um personagem de ficção que já veio pronto.

Parti do título, da terceira pessoa e da exploração dos mistérios da sorte. Mas estava duro. Tinha escrito umas 50 páginas só. Aí veio a quarentena e escrevi o resto em dois meses, um absurdo. Tranquilo em casa foi rapidíssimo. O critério foi escolher casos interessantes e divertidos. Se fracassos ou sucessos, não interessa. O Nelsinho acha que sucesso é muito bom, mas não ensina. É nos fracassos que as pessoas aprendem, pelo menos aqueles que assumem sua responsabilidade.

Você viveu muita coisa e muito intensamente. A narrativa do livro é muito rápida, de tal modo que você encerra uma história em poucas páginas.
Comecei a escrever como uma biografia-padrão, com infância, família e tal, em sequência cronológica. Quando começou a quarentena, comecei a bagunçar as coisas. Me lembrava de um episódio em 1982 e aí escrevia; lembrava de outro há três anos. Peguei coisas que postei no Facebook, botei poema, letra de música, então ficou uma narrativa totalmente fragmentada, não tem muito critério. Vários anos não são sequer mencionados. Aí o Pascoal Soto (editor da Estação Brasil) me disse: ‘Acabou”. Senão, eu estava no livro até hoje. 

Passagens conhecidas de sua vida – a relação com Elis Regina, a criação da boate Dancin’ Days, a participação no programa Manhattan Connection, por exemplo – aparecem muito pouco no livro. Como você elencou os fatos?
Tive a preocupação de não repetir o Noites tropicais (2000), que é completamente diferente, um livro em primeira pessoa de um jornalista e compositor que estava lá em condições privilegiadas. A relação com a Elis eu reduzi ao mínimo para manter o fio da história. Aquilo foi uma transformação na vida do Nelsinho e da Elis, uma puta sorte dela e minha nos encontrarmos naquele momento. Fiz o possível para não repetir nada.

Você conta várias histórias de namoradas e mulheres, muitas públicas e outras não. Mas, ainda que dedique um capítulo ao lançamento de Marisa Monte, não fala nada sobre a relação pessoal.
Isso daí nem no Noites tropicais eu explicitei. Ela é uma pessoa discretíssima, das mais discretas que conheço, das que mais amo e respeito. Está casada há mais de 10 anos com meu agente (Diogo Pires). Ali é família. Não acho que interessava voltar a esse assunto tantos anos depois. Tem a integridade e a honestidade da Marisa. Tudo dela é limpo, clean, então acho que a descoberta da Marisa Monte e o primeiro disco é o que interessa nessa história. Não é por questão de sinceridade ou de pudor.

É como a síndrome do Pigmalião, que fez uma estátua tão perfeita que se apaixonou por ela. Há muitos anos, em uma entrevista para a Playboy, quando perguntaram para a Marisa: ‘Você namorou o Nelson Motta?’, ela disse que ‘o que tivemos foi muito mais e melhor do que um namoro’. Ponto final. O namoro foi ali quase uma consequência do inevitável. Ali nasceu o primeiro disco, a Marisa Monte. Tinha uma grande mistura do pessoal com o artístico, pois nós dois estávamos completamente apaixonados pelas ideias daquele projeto.

Com João Gilberto em Nova York, após show do cantor baiano no Carnegie Hall(foto: Sextante/Divulgação)
Com João Gilberto em Nova York, após show do cantor baiano no Carnegie Hall (foto: Sextante/Divulgação)

Ao voltar ao passado, você também tentou prestar contas a ele e às pessoas com quem se relacionou? 
Tentei ser o mais discreto e elegante com as ex-mulheres. Claro que contei, foi um pedaço da minha história, mas não queria expô-las e só contar o suficiente e mostrar como foram importantes na minha vida, algo que aprendi com a Costanza (Pascolato, de quem se separou em 2000). O fim do casamento com a Adriana (Penna) gerou coisas engraçadas, pois, como ela disse, viramos room mates. É tudo elogioso, não tenho o espírito da indiscrição. Enquanto o João Gilberto estava vivo, ninguém ousou falar que ele fumava maconha o dia inteiro, que é um dado importante na personalidade e na produção dele.

João Gilberto é seu maior ídolo. Doeu lembrar a briga que tiveram na gravação do especial dirigido pelo Walter Salles para a Globo, em 1992?
Fiquei magoadíssimo, mas quando fui escrever essa história, vi que ele tinha toda razão. Nunca havia contado, mas depois fizemos as pazes, ele me ligou, como se nada tivesse acontecido. Descobri, à medida que fui escrevendo, que os depoimentos gravados (de outros artistas falando sobre ele) eram uma bobagem. Imagina ter um show do João Gilberto e do Tom Jobim com um bom som e uma boa imagem? Não precisa de mais. Contar esse caso foi um pedido de desculpas póstumo.

Você chega aos 76 no fim deste mês. Qual o sentimento que vem ao lançar uma autobiografia?
Um vazio enorme, um buraco negro. Já reli muitas vezes o livro, me lembrei de outras coisas. Mesmo nas partes mais pesadas, do hospital (em 2017, foi operado de fístula medular), cirurgia, cadeira de rodas, foi um prazer escrevê-lo, catártico. Neste episódio terrível do hospital, foi uma grande sorte encontrar o meu amigo Paulinho Niemeyer e voltar a andar. A perspectiva, ele disse para minhas filhas, era de 50% de possibilidade de eu voltar a andar.

Só soube disso depois. Por necessidade, fui fazer fisioterapia e acabei chegando ao boxe, que faço duas vezes por semana. Eu não entendia por que o João Gilberto adorava boxe. Para mim era uma contradição, o João, uma pessoa pacífica, como um mestre zen, gostar de boxe, que achava agressivo. Que burrão eu fui, é uma arte, um exercício ótimo e que você ainda bota para fora (as raivas e frustrações). Bolsonaro! Witzel! Quando termina a aula, estou suado e de alma lavada. 

Com Marilia Pêra (1943-2015), grávida de Esperança Pêra, filha do casal(foto: Sextante/Divulgação)
Com Marilia Pêra (1943-2015), grávida de Esperança Pêra, filha do casal (foto: Sextante/Divulgação)

TRECHO


Trocando faxes raivosos com João Gilberto em 1992

“Nelsinho voltou para Nova York e começou a receber faxes nervosos de Waltinho (Salles) sobre a edição do programa. João não queria isso, nem aquilo, nem mais nada: queria que o programa fosse só a gravação do concerto. Ficou furioso com a sugestão de incluir depoimentos de Arnaldo (Antunes), Herbert (Vianna) e Marina (Lima), dizendo que queriam se aproveitar dele. Queixou-se de que a edição privilegiava Tom (Jobim). Falou cobras e lagartos de Nelsinho para Waltinho. E pior: exigiu que o nome dele fosse retirado dos créditos.

Em Nova York, Nelsinho sentiu o golpe. Não faria mesmo sentido assinar um roteiro que não tinha escrito. (Ainda bem que já havia recebido o pagamento.) Então passou o dia escrevendo e reescrevendo um fax venenoso e seco que, achava ele, magoaria João. Dizia que o dom de João não lhe pertencia, mas era emprestado por Deus; que era intolerável tal comportamento com amigos que só queriam ajudá-lo e a forma como usava e manipulava as pessoas. Meia página cheia de mágoa por se dar conta do lado obscuro do seu ídolo máximo. Waltinho recebeu uma cópia do fax e comentou que, durante as brigas, tinha ficado assustado com a agressividade e a violência, sim, a violência do mestre da suavidade e da delicadeza.

No fundo e na verdade, o que poderia haver de mais interessante para dizer ou mostrar do que um concerto de Tom Jobim e João Gilberto?”

(foto: Sextante/Divulgação)
(foto: Sextante/Divulgação)

De cu pra lua
• Nelson Motta
• Estação Brasil (480 págs.)
• R$ 69,90 (livro) e R$ 39,99 (e-book) 


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