“Quando eu a conheci, ela estava sentada.” Essa é a primeira frase de um conto do escritor Sérgio Sant’Anna (1941-2020), mas Bia Lessa não se recorda de qual. “Lembro-me do dia em que ele me mostrou esse conto, em que se apaixonava por uma mulher manca. Com a frase inicial, já está tudo ali. Ao escrever ‘quando ela estava sentada’, ele mostra o que interessa: a mulher em si, e não o corpo dela. Como tão poucas palavras podem ter tantos significados?”, impressiona-se ainda hoje a diretora.
Amigos há mais de 30 anos – “ele funcionava como uma espécie de mestre, foi quem me introduziu no universo vanguardista” –, trabalharam juntos em dois espetáculos. Parte dessa relação será relembrada nesta noite, quando Bia Lessa participa do projeto Letra em cena on-line, cuja edição será dedicada à obra do escritor, morto em maio em decorrência da COVID-19, aos 78 anos.
“O que me enlouquece nele até hoje é a busca pela linguagem. Sérgio, o tempo inteiro, tem as palavras concatenadas umas nas outras. Ele inventa a linguagem, como Guimarães Rosa, mas de outro jeito. O conteúdo dele está vinculado à forma”, acrescenta Bia.
ANTUNES
Os dois se aproximaram nos anos 1980, quando a diretora deixou de trabalhar com o Centro de Pesquisas Teatrais (CPT), de Antunes Filho.
“Na época, ele me mostrou o projeto de uma obra inacabada e começamos a trabalhar nele”, conta Bia sobre o que se tornou o espetáculo Ensaio nº1 – A tragédia brasileira. A montagem, escrita por ele e dirigida por ela, estreou em 1984. Somente três anos mais tarde, Sant’Anna publicou o livro A tragédia brasileira, que ele definiu como um “romance-teatro”.
Divisor de águas na carreira da encenadora, Orlando (1989) também é fruto da parceria com Sant’Anna. “Na realidade, estava interessada em pensar o mundo de 1500 até os dias atuais. Até que um grande amigo me disse que o que eu estava fazendo já existia, e era Orlando (romance publicado por Virginia Woolf em 1928). Então, começamos a adaptar – era bonito como Sérgio dialogava com o livro. Ele escrevia, eu experimentava, ele reescrevia, e dali saiu um trabalho deslumbrante.”
A conversa desta noite, de acordo com Bia, vai ser sobre Sérgio Sant’Anna “enquanto criador no próprio trabalho, a partir da experiência que tive com ele”. Experiência, aliás, que continua depois da morte do escritor.
A partir de uma ideia da pesquisadora e crítica literária Flora Süssekind, Bia desenvolveu um projeto audiovisual em torno de Confissões de Ralfo: uma autobiografia imaginária. Publicada por Sant’Anna em 1975, a obra foi relida por um grupo de quase 200 pessoas, palavra por palavra, em registro feito na plataforma Zoom.
"O que me enlouquece nele até hoje é a busca pela linguagem. Sérgio, o tempo inteiro, tem as palavras concatenadas umas nas outras"
Bia Lessa, diretora
VÍDEO
Chico Buarque, Jorge Mautner, Gilberto Gil, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Ernesto Neto e outras personalidades participaram do projeto, que resultou em um vídeo de oito horas de duração.
“Foi uma coisa feita de forma muito espontânea. O mais bacana foi a disponibilidade de todos em participar”, diz Bia. Neste momento, ela está em conversas para decidir por qual plataforma o projeto será lançado. Mas a ideia é lançar essa leitura de Confissões de Ralfo ainda este ano.
LETRA EM CENA ON-LINE – COMO LER SÉRGIO SANT’ANNA
.Com Bia Lessa
.Nesta terça-feira (27), às 20h
.No canal do Minas Tênis Clube no YouTube (youtube.com.br/minastcoficial)