Atriz que foi escrava sexual de seita conta em série sua trajetória

Cento e vinte anos de prisão. Desde a última terça-feira (27), Catherine e India Oxenberg, mãe e filha, estão aliviadas, para dizer o mínimo. Não somente elas, mas as centenas de vítimas, boa parte delas mulheres, de Keith Raniere. O criador da seita NXIVM (pronuncia-se Nexium), de 60 anos, vai passar o resto da vida encarcerado. 

Sua sentença foi proferida em um tribunal do Brooklyn, Nova York, onde o caso foi aberto em maio do ano passado. Ele foi considerado culpado por extorsão, tráfico sexual, conspiração, trabalho forçado, roubo de identidade, exploração sexual de uma criança e posse de pornografia infantil. Raniere também deverá pagar multa de US$ 1,75 milhão (R$ 10 milhões).

A história de Raniere e da NXIVM veio a público em 2017, após investigação do FBI. O caso, cheio de detalhes sórdidos, ganhou mais vulto graças à participação de famosos, entre eles a atriz Allison Mack, uma loirinha simpática que teve sua dose de popularidade graças à série Smallville (2001-2011). Ela, que se declarou culpada de acusações de extorsão, aguarda sua sentença.

A série de nove episódios The vow, que a HBO exibiu entre agosto passado e meados deste mês, acompanhou a trajetória da NXIVM até a prisão de Raniere. A emissora já prometeu uma segunda temporada, com o julgamento e seus desdobramentos. Agora, outra produção vem lançar novas luzes sobre o caso. 

Com estreia prevista para 15 de novembro próximo na plataforma Starzplay, Seduced: Inside the NXIVM cult, documentário em quatro partes, traz a história de India Oxenberg, uma das vítimas de Raniere.

PRIMEIRA PESSOA

Enquanto The vow carrega no tom de documentário investigativo, Seduced é mais pessoal. Também produtora-executiva da obra, India narra sua história em primeira pessoa. Hoje com 29 anos, a filha da atriz Catherine Oxenberg (que tem como ponto alto na carreira um papel de destaque na novela Dinastia), tornou-se escrava sexual de Raniere.

India, que passou quase uma década no culto, é uma das mulheres que foram marcadas com um cauterizador na região pélvica com as iniciais de Keith Raniere. Tais mulheres eram integrantes do DOS (ou Voto), uma sociedade secreta dentro da seita. Serviam, de todas as maneiras, exclusivamente a Raniere (que se autonomeava Vanguarda). Sua entrada e permanência eram creditadas a chantagem. Senhor máximo do DOS, ele tinha “garantias” das integrantes, na verdade, fotos e vídeos sexualmente explícitos das vítimas que iriam a público caso elas não colaborassem. 

Seduced acompanha toda a trajetória de India, que integrou a seita entre 2011 e 2018. Catherine, que esteve em The vow e produziu o telefilme Escaping the NXIVM cult: A mother’s fight to save her daughter (Escapando da seita NXIVM: A luta de uma mãe para salvar sua filha, de 2019), para o canal Lifetime, também tem participação ativa na nova série. Afinal, foi ela quem levou India para a seita.

Com sede em Albany, no estado de Nova York, o NXIVM era apresentado por meio do ESP, sigla para Executive Success Program, basicamente um programa de autoajuda. Catherine ficou sabendo de um encontro que ocorreria em Venice Beach, Califórnia. India, então com 19 anos, tentando descobrir o que fazer da vida (até então havia feito pequenas participações em programas de TV), animou-se com a ideia. Quase 10 anos atrás, a mãe pagou US$ 3 mil (para cada uma) em uma imersão de cinco dias no ESP para as duas. 

Iniciantes, nem sequer sabiam direito quem era Raniere, uma pessoa que só se apresentava para membros mais avançados da organização. Mas, já naquele momento, a dupla conheceu a mão direita dele, Nancy Salzman, enfermeira com experiência em neurolinguística. Mãe e filha foram alocadas em grupos diferentes já nas primeiras reuniões. 

NOBRE Catherine e India são apresentadas como boas aquisições para o NXIVM. A mãe, além de ser conhecida como atriz, também tem ascendência nobre. É filha da princesa Elizabeth da Iugoslávia, de 84 anos. Nascida em Belgrado, Sérvia, ela foi expulsa com sua família em 1941, quando um golpe de Estado tirou o poder de seu pai, o príncipe regente Paul da Iugoslávia, pondo um fim à monarquia. É prima do príncipe Charles e da rainha Sofía, da Espanha.

Após esta primeira imersão, as duas se interessaram pelo programa, com Catherine abrindo sua casa para uma reunião de um grupo de mulheres – ocasião em que a própria princesa Elizabeth participou, mesmo tendo achado tudo uma grande bobagem, ela admite no documentário. E assim Catherine e India entraram naquele mundo. 

A atriz não demorou a perceber a cilada e saiu fora. Mas não conseguiu tirar a filha. Dominada por Raniere, India permaneceu fiel a ele, inclusive após sua prisão, em março de 2018, quando foi descoberto escondido dentro de um armário de uma casa em Puerto Vallarta, México. 

A mãe teve que intervir à força. Nesse período, Catherine lançou um livro contando sua saga para libertar a filha, Captive: A mother’s crusade to save her daughter from a terrifying cult (Cativa: a cruzada de uma mãe para salvar a filha de um culto terrível). India seguiu o exemplo e lançou recentemente o audiolivro Still learning (Ainda aprendendo).

Cheia de lances dramáticos, a série acompanha as duas mulheres e outras vítimas da seita. Especialistas ainda explicam que o esquema criado por Raniere, mesmo tendo enganado tanta gente, não tinha nada de original. Era baseado principalmente no velho método de pirâmide financeira. 

Dias antes de a sentença de Raniere ser proferida, India e Catherine falaram ao Estado de Minas. Visto de fora, o que ocorreu com elas é mais estranho do que a ficção. Muito antes pelo contrário, elas dizem. Era a aparentemente normalidade o chamariz da NXIVM. “Tudo acontece em um ambiente de subúrbio, como se você estivesse em seu próprio quintal”, afirma India.

India Oxenberg – Por um tempo eu não quis falar sobre isso, achava que não falando tudo poderia desaparecer. Mas não é dessa forma que as coisas funcionam. Você tem que se confrontar com questões dolorosas se quer seguir em frente. Quando comecei o meu processo de cura, parte dele demandava trazer minha história de volta, mas agora com controle sobre ela.

India – Não, foi justamente o oposto. A minha promessa pessoal foi de total honestidade, contar tudo. Mesmo sendo muito desconfortável, entendi que a melhor maneira de fazer com que as pessoas entendessem o que ocorreu era contar a verdade. 

Catherine – Para mim foi expor a minha filha em frente a todos. Quando fui à imprensa, no início de 2019, aquilo machucou muito. O assunto é horroroso e, ao mesmo tempo, eu sentia que também estava traindo minha filha, tanto que poderia perdê-la para sempre.

India – O pior foi voltar e visitar lugares em que perdi tanto da minha vida, já que a maior parte dos meus 20 anos eu passei nessa organização. Hoje, tenho dias bons e outros ruins, já que falar sobre isso exige muito de mim.

India – Ele é muito moderno. Eles usam tecnologia, influenciadores, pessoas que têm status para chamar outras. É tudo muito bem trabalhado, porque tudo acontece em um ambiente de subúrbio. Parece você em seu quintal, mas na realidade é um predador que está morando em sua vizinhança. Não é um culto numa floresta ou coisa parecida, mas algo que pode ocorrer em qualquer lugar do mundo. Para quem está do lado de fora, parece absolutamente normal.

India – Fui introduzida por Allison Mack, antes nunca tinha ouvido falar. Ela falava o mínimo necessário. Sempre que eu pedia mais informação, eu tinha que dar novas garantias (que poderiam ser fotos e vídeos de sexo). Era assim que a chantagem funcionava.

India – Tenho amigos que estavam e saíram. Mas não falo com pessoas que se mantiveram fiéis a Keith, para minha própria proteção. É muito triste, muitas delas foram muito próximas de mim e estão em completa negação. Não quiserem ler nada sobre os processos contra Keith, só querem acreditar no que as interessa.

India – Educar. Fazer as pessoas entenderem que essas coisas existem e que procurem sinais de alerta para poder evitar abusos de poder.

Catherine – Espero também que todo esse processo ajude a mudar a legislação. Porque este caso é inovador. A promotoria teve que estabelecer um controle coercitivo, o que é algo que não é bem compreendido neste país. Não temos muitas leis para proteger as vítimas. Então, acredito que este processo possa trazer mudanças na legislação, que modificarão a forma como predadores serão julgados no futuro. 

• Série documental em quatro partes. Estreia em 15 de novembro, na plataforma Starzplay.