Caetés (1933), romance de estreia de Graciliano Ramos (1892-1953), traz uma frase que marcou o escritor Milton Hatoum profundamente: “O mais difícil é escrever”. “Graciliano não escreveu muito e não foi preciso. Para que publicar loucamente, um livro a cada dois anos? Eu me reconheço muito na dificuldade de escrever, que vem de Flaubert, do drama da linguagem. A linguagem é a grande questão da literatura, que não é só contar uma história, mas como contá-la.”
Com a viagem adiada para o ano que vem, o biógrafo espera finalizar o livro até o fim de 2021. “Escrevendo sobre ele, vejo Graciliano como um exemplo excepcional, coerente e digno para o mundo de hoje. É difícil encontrar um escritor contemporâneo que tenha a mesma posição dele diante da escrita.”
Apaixonado pela obra de Graciliano, que conheceu na adolescência, Hatoum é o convidado da edição do projeto Letra em Cena on-line desta terça-feira (10). No canal do YouTube do Minas Tênis Clube, a partir das 20h, o autor amazonense fala sobre a obra do alagoano. O encontro virtual terá leitura de textos de Graciliano pela escritora Bruna Kalil Othero.
Na entrevista a seguir, Hatoum traça relações de Graciliano com o Brasil atual e fala da concisão que marca a escrita do autor, eternizada no poema Graciliano Ramos, de João Cabral de Melo Neto. “É melhor você escrever a sua verdade. Fora dela, você está falseando.”
Você já falou que Vidas secas foi um de seus romances de formação. Qual foi o primeiro contato que teve com a obra de Graciliano Ramos?
Li Vidas secas (1938) e Infância (1945) no ginásio, em Manaus. Tinha 14 anos. A leitura foi muito importante, porque ele é um dos grandes escritores, e eu não o conhecia. Acabei sendo orientado por uma professora do Colégio Pedro II, público, que nos fez ver a importância do Graciliano em relação à linguagem, à questão social, ao conhecimento do outro, de outra geografia, região.
Estávamos em Manaus, à beira do Rio Negro, o maior afluente do Rio Amazonas. É excesso de água, e Vidas secas é o avesso disso. Não captei toda a força do romance naquela época, nem do Infância, que eu achava que era estritamente um livro de memórias. E ele não é só isso. Reli tudo de Graciliano várias vezes. Enfim, é um escritor que não publicou muitos livros, a obra dele não é prolífica. Mas não precisa ser.
Estávamos em Manaus, à beira do Rio Negro, o maior afluente do Rio Amazonas. É excesso de água, e Vidas secas é o avesso disso. Não captei toda a força do romance naquela época, nem do Infância, que eu achava que era estritamente um livro de memórias. E ele não é só isso. Reli tudo de Graciliano várias vezes. Enfim, é um escritor que não publicou muitos livros, a obra dele não é prolífica. Mas não precisa ser.
Até nisso Graciliano foi conciso.
Ele é um escritor da extrema concisão. O João Cabral tem um poema chamado Graciliano Ramos, em que fala dessa escrita muito concisa. Fala que, em 20 palavras, está a força da concisão dele. (“Falo somente com o que falo:/com as mesmas vinte palavras/girando ao redor do sol/que as limpa do que não é faca” são os versos iniciais). Isso me fascinou. Na minha época de ginásio, li os contos de Machado (de Assis) e uma parte de Os sertões (de Euclides da Cunha). Ali tive uma empatia maior pela linguagem machadiana e graciliana, a imagem de uma faca só lâmina, para usar uma expressão do João Cabral.
A literatura nordestina era muito retórica. Um romance como O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, antecipa isso, fazendo uma alusão à seca de 1915. Um dos grandes feitos da obra do Graciliano, sobretudo a partir de Vidas secas, foi interiorizar a fala e o pensamento do sertanejo. O Fabiano e a Vitória (personagens do romance) falam por eles mesmos, não é um narrador culto que se intromete para falar por eles. Graciliano entendeu isso, ele conhecia esse mundo sertanejo, pobre. Esse discurso interiorizado, que depois será muito explorado em Guimarães Rosa, pelo Riobaldo. Mas a origem está no Vidas secas. Até a cachorra Baleia tem os sonhos e os sofrimentos dela.
A literatura nordestina era muito retórica. Um romance como O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, antecipa isso, fazendo uma alusão à seca de 1915. Um dos grandes feitos da obra do Graciliano, sobretudo a partir de Vidas secas, foi interiorizar a fala e o pensamento do sertanejo. O Fabiano e a Vitória (personagens do romance) falam por eles mesmos, não é um narrador culto que se intromete para falar por eles. Graciliano entendeu isso, ele conhecia esse mundo sertanejo, pobre. Esse discurso interiorizado, que depois será muito explorado em Guimarães Rosa, pelo Riobaldo. Mas a origem está no Vidas secas. Até a cachorra Baleia tem os sonhos e os sofrimentos dela.
Você acha que Graciliano deve ser lido quando jovem?
Deve ser lido na escola. (Vidas secas) É um livro complexo, que convida para uma segunda, terceira leituras. Li aos 14 anos e agora meu filho, de 16, está lendo para a escola. Meio século depois de mim, ele se emocionou. E ele não é um leitor como eu gostaria que fosse, mas eu não me intrometo. Ficou emocionado com a morte da Baleia, percebeu a brutalidade do capítulo O soldado amarelo, descobriu um vocabulário que não conhecia. Isso é literatura, que enriquece sua vida, seu espírito, sua visão de mundo. Para ele, o sertão hoje é inseparável de Vidas secas. Me perguntou quantos Fabianos ainda existem no Brasil. Eu disse que milhões. Mas nunca é tarde para ler um romance. Às vezes, não se leram os clássicos brasileiros na juventude. Nada é obrigatório.
Que relações podem ser feitas da obra de Graciliano com o Brasil de hoje?
Ele foi preso sem acusação formal, um pouquinho antes do golpe do Estado Novo. Em Memórias do cárcere (1953), fala ironicamente do “nosso pequenino fascismo tupiniquim”. Se você prestar atenção, a atitude do personagem do fazendeiro (Paulo Honório) em São Bernardo (1934) é muito machista. Contra quem? Contra a mulher dele. E quem é Madalena? Uma professora. Ele fala que é uma vagabunda, comunista, diz que as mulheres intelectuais não prestam, são perigosas. Graciliano escreveu isso na década de 1930.
LETRA EM CENA
Como ler Graciliano Ramos. Com Milton Hatoum. Nesta terça (10), às 20h, no canal do YouTube Minas Tênis Clube (youtube.com.br/minastcoficial).
Pandemia adia pesquisa biográfica
Um dos maiores especialistas na obra de Graciliano Ramos, Wander Melo Miranda vem se dedicando a uma biografia do escritor, que será publicada pela Companhia das Letras. A pandemia do novo coronavírus atrapalhou os planos do professor em relação ao livro.
Já com a metade da obra escrita (200 páginas), Melo Miranda esperava ir neste ano a campo: Alagoas e Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Graciliano nasceu em Quebrangulo; foi prefeito de Palmeira dos Índios, entre 1928 e 1930; e viveu em Maceió até ser preso, em 1936. Deixou o estado natal como preso político de Getúlio Vargas e ficou encarcerado no presídio de Ilha Grande.
EXEMPLO
Com a viagem adiada para o ano que vem, o biógrafo espera finalizar o livro até o fim de 2021. “Escrevendo sobre ele, vejo Graciliano como um exemplo excepcional, coerente e digno para o mundo de hoje. É difícil encontrar um escritor contemporâneo que tenha a mesma posição dele diante da escrita.”
Publicada em 1992, a tese de doutorado de Melo Miranda, Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, é um estudo pioneiro na reavaliação da importância de Memórias do cárcere na obra do escritor alagoano. Ainda sobre ele, o acadêmico publicou em 2004 o ensaio Graciliano Ramos.
“Graciliano traz tudo ao contrário da época em que vivemos. É uma pessoa de grande consciência social, que nunca se dobrou aos poderosos, ao dinheiro. Depois que deixou de ser prefeito, viveu com o trabalho de escritor. Isto pelo menos me dá um pouco de alento para enfrentar este período”, afirma Melo Miranda.