Tem como ficar melhor? Não restam dúvidas. Quanto mais se aproxima do tempo presente, mais The crown se torna instigante para a plebe, que agora pode ouvir o que (supostamente) foi dito entre os muros intangíveis da realeza britânica.
Cobrindo principalmente a década de 1980 – os 10 novos episódios, com estreia neste domingo (15), na Netflix, vão do final dos anos 1970 até o início dos 1990. Assim, a narrativa criada por Peter Morgan chega à era das celebridades.
Até então sem rival à altura, a rainha Elizabeth (defendida com uma firmeza cheia de nuances por Olivia Colman) encontra em duas mulheres sem nenhuma afinidade com a família real duras concorrentes.
Quem conseguiu passar batido pela brilhante saga que acompanha os Windsor a partir da metade do século 20 deverá se render a The crown nesta temporada. Seus dois chamarizes são diametralmente opostos: a Dama de Ferro e a Princesa do Povo.
Gillian Anderson garante a Margaret Thatcher um registro que não tem nada a ver com o que deu a Meryl Streep seu terceiro Oscar, por A dama de ferro (2011). O tom de voz inabalável e a postura se mantêm por toda a temporada. Mas a personagem vai se descortinando aos poucos. Como sabemos, trata-se da primeira mulher (e até agora única) a ocupar o cargo de premiê do Reino Unido. Ela foi também a pessoa que se manteve nele por mais tempo no século passado.
É possível sentir até empatia por ela, em sua risível tentativa de participar de um fim de semana no Castelo de Balmoral, na Escócia, em meio à chuva, lama e caçadas com os membros da família real. Thatcher, que no primeiro encontro com a rainha afirma que não haveria nenhuma mulher entre seus ministros, porque afinal não faz sentido haver mulheres no poder, é vista sob um ângulo mais favorável em outra ocasião, quando seu filho Mark desaparece em meio ao Rally Paris-Dakar.
ÁRVORE
Mas os olhares, nesta temporada, estarão todos voltados para Emma Corrin. A atriz de 24 anos, que vem dos palcos e começa a dar os primeiros passos no cinema e na televisão, empresta um ar ao mesmo tempo doce e frágil à personagem. Diana era uma criança crescida quando conheceu o príncipe Charles (Josh O’Connor, com mais destaque e força do que na terceira temporada), vestida de árvore para uma apresentação de Sonho de uma noite de verão na escola.
Não havia como o romance dar certo, já que fica claro, desde o momento inicial, que nunca houve romance. Só que ninguém disse isso a ela. Diana foi uma das figuras públicas mais amadas do século passado. Foi uma “princesa do Instagram” muito antes de se ouvir falar em redes sociais.
Emma Corrin tinha pela frente uma personagem complexa: doce, esperta e frágil, Diana também sabia ser calculista, infantil e petulante. E ela alcança um resultado à altura da complexidade de Diana. A tímida inclinação da cabeça da princesa, uma de suas marcas registradas, está lá. O famoso constrangimento do anúncio do noivado de Charles e Diana – “O que o amor significa?”, disse o príncipe – é recriado.
O que a ficção traz que a vida real nunca mostrou explicitamente são os momentos de solidão. O terceiro episódio, ironicamente intitulado Conto de fadas, é aberto com o aviso: “Este episódio contém cenas de um distúrbio alimentar que podem ser um gatilho emocional”.
A partir desta mensagem, descobrimos o mundo da tão falada bulimia da princesa, que se manifestou antes do casamento, quando Diana, sem o menor contato com Charles e a rainha, passava seus dias em Buckingham preparando-se com a avó megera (que era dama de companhia da rainha mãe) e patinando sozinha nas salas vazias do palácio. No meio disso, tinha que lidar com Camila Parker-Bowles (Emerald Fennell), a rival que muito mais tarde finalmente tomou seu lugar.
The crown não é a melhor série histórica deste e de outros tempos somente pelo elenco exemplar, pela direção de arte e fotografia (assinada pelo paulistano Adriano Goldman) nos quais foram gastos milhões de libras, além de muito talento. Mas também pelo mérito de desvendar, com uma lupa, a narrativa que milhões de pessoas, mundo afora, se acostumaram a acompanhar por meio da imprensa.
CRISE
Os 10 novos episódios cobrem não apenas o noivado, o casamento e a crise conjugal de Charles e Diana. Na esfera política, a Casa de Windsor teve que lidar com as consequências mortais do terrorismo do IRA, com uma crise econômica que levou a taxa de desemprego às alturas, uma avalanche, uma guerra e dois arrombamentos do Palácio de Buckingham.
Criador da série, Peter Morgan alinhava a trama de tal maneira que cada episódio tem vida própria. Ele dificilmente cai no óbvio, o que poderia deixar morosa uma história de época com tantas décadas e personagens. Um bom exemplo da costura engenhosa entre público e privado se dá no quarto episódio, Favoritos.
De um lado, temos Thatcher impressionantemente fragilizada com o sumiço do filho Mark. “E ele é meu favorito”, comenta, casualmente, mas entre lágrimas, com a rainha, em uma das famosas audiências privadas com a soberana. Elizabeth, um tanto chocada com a preferência confessa por um dos filhos, decide se reunir em separado com cada um de seus quatro herdeiros para tentar estreitar laços – e descobrir se também tem uma preferência (o que o sempre mordaz príncipe Philip de Tobias Menzies já havia identificado, por sinal).
O encontro com cada filho se revela um fracasso – atenção para o diálogo que Elizabeth tem com Andrew (Tom Byrne), o terceiro filho, um prenúncio do escândalo sexual que ganhou vulto recentemente e o fez se afastar da vida pública.
Em meio à própria crise familiar, assistimos a Thatcher primeiramente evitando uma decisão sobre a invasão das Falklands pelos argentinos. Posteriormente, com o filho em casa, vemos a primeira-ministra indo com tudo para a Guerra das Malvinas por motivações pessoais. E, a partir do triunfo bélico do Reino Unido, a mandatária finalmente alcança a popularidade que nunca teve até então.
Ainda que retrate acontecimentos e pessoas que foram manchete no planeta, a escrita da série o faz sempre por um ângulo inusitado. Privilégio, sexismo e preconceito – os Windsor são retratados como ensimesmados e avessos ao que surgir de fora e não faça parte das elites – vêm à tona ao longo da temporada.
The crown perpassa todo o drama da década de 1980 com suas melhores características. Para o espectador, que até então havia assistido a tudo de longe, essa proximidade, ainda que ilusória, é um presente.
THE CROWN
>> A quarta temporada, com 10 episódios, estreia neste domingo (15) na Netflix