O primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho nasceu em Belo Horizonte. Mais precisamente, na Avenida Afonso Pena, em um dos quartos do finado Othon Palace, onde o cineasta se hospedou em 2007 durante uma edição do Festival Internacional de Curtas.
A proximidade da data-limite de um edital do Ministério da Cultura fez o pernambucano escrever 76 páginas em nove dias. Mas, na verdade, o filme já começara a ser concebido – na cabeça do cineasta. “A escrita veio de um acúmulo de ideias anotadas ao longo de alguns anos; o roteiro não foi selecionado naquela primeira tentativa, mas ficou entre os vinte finalistas, e já era o filme que seria feito mais tarde, com o acréscimo de novas ideias, informações e detalhes”, narra Kleber na introdução do livro recém-lançado com os roteiros de O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019), este último com Juliano Dornelles. “Acho que este livro é a pequena peça para um acervo, um arquivo de histórias da cultura brasileira”, diz o diretor, em entrevista por telefone ao Estado de Minas.
O livro inclui um alentado prefácio do professor e pesquisador Ismail Xavier, com análises pormenorizadas dos três longas e do trabalho de criação. “Os três roteiros são muito claros em sua exposição de cada fase da trama”, observa Ismail, destacando também a habilidade na construção dos diálogos, “sempre ajustados ao teor dramático da cena”, e a liberdade do autor nas indicações técnicas e outras orientações. “Acredito que é preciso ser claro e objetivo, mas refletindo o seu estilo de escrever e de ver as coisas”, afirma Kleber Mendonça. Entusiasmado com a liberdade do uso de palavras para criação de personagens e conflitos, o cineasta cogita escrever um romance. “É uma ideia cada vez mais atraente.”
Produzidos e lançados nos últimos dez anos, os três longas de Kleber Mendonça espelham as tensões, impasses e conflitos – alguns velados, outros explícitos – cada vez mais presentes na sociedade brasileira. Ele admite que “subiu o tom” de O som ao redor, no qual “as coisas não são ditas, são mostradas”, para Aquarius. “Veio naturalmente, não dá para se fingir de mouco e ignorar o que está se passando no país”, diz o cineasta, que se manifestou contra o impeachment de Dilma Rousseff na estreia de Aquarius, em 2016, no Festival de Cannes.
“Quando a gente estava filmando uma externa com a Sonia (Braga), passou um cara e xingou a equipe de ‘vagabundos, filhos da puta’ e mandou a gente trabalhar. Não consegui ignorar, por isso o filme tem discussões com dedo na cara e confronto forte no final”, lembra.
A elevação de tom prosseguiu com Bacurau, o filme mais bem sucedido do diretor de 52 anos. Prêmio Especial do Júri em Cannes, o longa-metragem foi visto por mais de 700 mil espectadores no país no ano passado. O roteiro nascido da “vontade de misturar energias distintas” (western, drama, suspense, ficção científica) foi escrito ao longo de oito anos.
“Eu e Juliano construímos Bacurau em cima de erros, agressões e violências históricas que têm marcado a sociedade brasileira e o mundo”, detalha o cineasta pernambucano.
“Apesar de se passar num futuro próximo, não tem nada de novo. São os conflitos históricos: ignorância, racismo, falta de respeito com o Nordeste, com o passado, com as minorias e a capacidade das pequenas comunidades de se unir para enfrentar essas injustiças”, destaca Kleber. “E, como estamos no cinema de gênero, isso nos libera para a catarse e para usar as ferramentas do cinema de ação, como a violência gráfica.” Ele externa os sentimentos que o moveram nas três criações: “Tem compaixão em todos eles, e, às vezes, tem também alguma raiva: porque às vezes é preciso reagir.”