Na turma do primeiro período de medicina, ele é o único aluno negro. Andando pela rua, é violentamente agredido por policiais, que fazem “abordagem de rotina”. Na casa da colega da faculdade, em um bairro nobre, é alvo de comentários preconceituosos da mãe da moça, desconcertada com sua presença. Embora o personagem de Juan Paiva em M8 – Quando a morte socorre a vida protagonize uma história de ficção, estão ali cenas que, infelizmente, são reais – e diárias – para milhões de jovens negros no Brasil. Nesta quinta-feira (3), o filme estreia nas salas de cinema.
A nova rotina de Maurício no curso, frequentado majoritariamente por pessoas de classes privilegiadas, alterna-se entre o acolhimento de colegas mais receptivos, como Domingos (Bruno Peixoto) e Suzana (Giulia Gayoso), e atitudes preconceituosas dos outros. Enquanto tenta se adaptar ao contexto de diferenças sociais marcantes, o jovem acaba desenvolvendo uma relação diferente com M8, por ser o único incomodado com o fato de aquele corpo ter nome, vida e história antes de ser enviado à universidade como indigente.
Jeferson De chama a atenção para o poder do audiovisual de denunciar o racismo. “Desde o advento das redes sociais e da câmera de celular, tudo o que estava escondido veio à luz. Foi possível gravar o que ocorreu com o Floyd (nos EUA) e compartilhar. O Beto foi morto no Sul do Brasil e poucas horas depois o Lewis Hamilton, em Londres, postou sobre a morte dele. A rede de comunicação entre as pessoas para quem as vidas negras realmente importam faz o mundo mudar. Mostramos para nós mesmos o quão cruel pode ser um homicídio”, argumenta. E reforça: “Tem melhorado? Não. Mas agora a gente vê e pode compartilhar o que acontece, inclusive para um presidente e um vice-presidente que dizem que o racismo não existe no Brasil.”
Jeferson De diz que o movimento antirracista em outros países deve servir de exemplo para o cinema brasileiro. “Nos Estados Unidos, especialmente em função do streaming, existe uma diversidade e espero que isso ocorra por aqui, especialmente na forma de construir o audiovisual. Sem a nossa participação, isso não vai ocorrer. Outras pessoas que estão forçando a porta, como, por exemplo o Gabriel Martins e o André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, aí de Minas, a Camila de Moraes, no Rio Grande do Sul, e a Glenda Nicácio, na Bahia”, lembra. “São várias pessoas e nada tem sido dado a nós, é uma conquista de cada um. A nova geração está forçando a porta para que a diversidade não seja só uma palavra dita por executivos, mas que conte, de fato, com a nossa participação”, afirma.
Na trama baseada no romance homônimo de Salomão Polakiewicz, Paiva interpreta Maurício. Morador da periferia carioca e filho de uma auxiliar de enfermagem (papel de Mariana Nunes) que batalhou sozinha para que ele pudesse ingressar no concorrido curso de medicina, a sorte do calouro é melhor do que a de outro jovem negro, o M8, “nome” dado a um dos cadáveres estudados pelos universitários na aula de anatomia.
INDIGENTE
A nova rotina de Maurício no curso, frequentado majoritariamente por pessoas de classes privilegiadas, alterna-se entre o acolhimento de colegas mais receptivos, como Domingos (Bruno Peixoto) e Suzana (Giulia Gayoso), e atitudes preconceituosas dos outros. Enquanto tenta se adaptar ao contexto de diferenças sociais marcantes, o jovem acaba desenvolvendo uma relação diferente com M8, por ser o único incomodado com o fato de aquele corpo ter nome, vida e história antes de ser enviado à universidade como indigente.
No caminho de casa para a faculdade, Maurício atravessa, diariamente, a manifestação de mães negras que lutam pelo direito de enterrar os filhos desaparecidos, vítimas da violência. O estudante passa a viver numa espécie de transe, em que M8 (interpretado silenciosamente por Raphael Logam) parece tentar lhe revelar algo. Apesar das camadas de surrealismo e fantasia, a narrativa traz questões urgentes e muito reais do cotidiano marcado pelo racismo estrutural – no Brasil e no mundo.
“O filme é uma obra de ficção, baseado na ficção, mas algumas cenas que filmei, da forma que filmei, dialogam com o que a gente viu, por exemplo, no Carrefour e em outros tantos casos de violência policial contra os jovens negros”, afirma o diretor Jeferson De. Ele se refere ao crime ocorrido em novembro, em Porto Alegre, quando João Alberto Silveira Freitas, o Beto, foi espancado até a morte por seguranças do supermercado.
“Embora o roteiro tenha ficado pronto há mais de dois anos, a maneira como filmei retrata de maneira muito parecida, muito similar, a violência que rolou com o George Floyd, com o Beto e com tantos outros”, argumenta.
Premiado em 2010 com os troféus de Melhor filme e Melhor direção no Festival de Gramado, com o longa Bróder, Jeferson De escreveu o roteiro de M8 em parceria com Carolina Castro.
“O filme começa com a história do nosso cadáver, mas fala sobre as diversas formas com que o racismo estrutural deixa marcas no Brasil”, afirma Jeferson. “É desse encontro (entre Maurício e M8) que estabelecemos o diálogo para conversar com o que acontece atualmente, com toda a história negra neste país, da escravidão ao cotidiano atual, sobre como o preconceito se estabelece, com o racismo e o machismo”, diz o cineasta. “Infelizmente, é uma história bastante atual. Adoraríamos que fosse um filme sobre o passado, mas é sobre o presente.”
REDES SOCIAIS
Jeferson De chama a atenção para o poder do audiovisual de denunciar o racismo. “Desde o advento das redes sociais e da câmera de celular, tudo o que estava escondido veio à luz. Foi possível gravar o que ocorreu com o Floyd (nos EUA) e compartilhar. O Beto foi morto no Sul do Brasil e poucas horas depois o Lewis Hamilton, em Londres, postou sobre a morte dele. A rede de comunicação entre as pessoas para quem as vidas negras realmente importam faz o mundo mudar. Mostramos para nós mesmos o quão cruel pode ser um homicídio”, argumenta. E reforça: “Tem melhorado? Não. Mas agora a gente vê e pode compartilhar o que acontece, inclusive para um presidente e um vice-presidente que dizem que o racismo não existe no Brasil.”
Ao comentar a linguagem que adotou, mais próxima do gênero fantástico e com doses de suspense, o diretor explica que esse recurso é eficaz para abordar temas reais. “O princípio de que parti é de que nossos mortos, pessoas que já se foram e por quem temos um carinho, mesmo sem tê-las conhecido em vida, essas mortes não podem ter sido em vão. Os antepassados têm muito a nos dizer. Marielle, Zumbi, o menino Miguel, Beto, essas mortes não podem ser em vão”, defende.
Jeferson acredita que suspense e o terror traduzem essa realidade “de maneira muito precisa e potente”. O diretor cita o filme Corra!, de Jordan Peele, como inspiração, mas chama a atenção para alguns aspectos documentais de M8, como cenas das ruas da periferia carioca ocupadas pelo Exército.
Lamentando ser “exceção no cinema brasileiro”, Jeferson tem carreira respeitada e premiada, mas adverte: “Apesar de muitos avanços na frente da tela, atrás da tela ainda sofremos muito racismo. O cinema brasileiro foi estabelecido dentro do racismo estrutural, as pessoas negras não têm acesso para montar, escrever ou dirigir filmes.”
Nos últimos anos, prêmios importantes em Hollywood, como o Oscar, foram entregues a cineastas negros – Jordan Peele (Corra!), Barry Jenkins (Moonlight: Sob a luz do luar) e o veterano e grande referência Spike Lee, que lançou Infiltrado na Klan, em 2019. Nos próximos anos, o cinema norte-americano promete intensificar a missão de corrigir a injustiça histórica, dando mais espaço a afro-americanos. Inclusive, o novo regulamento do Oscar estabelece critérios de representatividade racial na disputa pela estatueta de Melhor filme, a partir de 2025.
PORTA
Jeferson De diz que o movimento antirracista em outros países deve servir de exemplo para o cinema brasileiro. “Nos Estados Unidos, especialmente em função do streaming, existe uma diversidade e espero que isso ocorra por aqui, especialmente na forma de construir o audiovisual. Sem a nossa participação, isso não vai ocorrer. Outras pessoas que estão forçando a porta, como, por exemplo o Gabriel Martins e o André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, aí de Minas, a Camila de Moraes, no Rio Grande do Sul, e a Glenda Nicácio, na Bahia”, lembra. “São várias pessoas e nada tem sido dado a nós, é uma conquista de cada um. A nova geração está forçando a porta para que a diversidade não seja só uma palavra dita por executivos, mas que conte, de fato, com a nossa participação”, afirma.
Previsto para ser lançado no primeiro semestre, M8 – Quando a morte socorre a vida teve sua estreia adiada por causa da pandemia. Apesar do contexto adverso, o diretor comemora a possibilidade do encontro presencial do público com o longa.
“É um filme muito da ordem do agora. Maurício e a mãe são pessoas ligadas à medicina, nada mais atual do que juntar a temática negra com a medicina. Além disso, mostramos a força e a resistência do cinema brasileiro neste momento”, conclui Jeferson De.
M8 – QUANDO A MORTE SOCORRE A VIDA
Direção de Jeferson De. Com Juan Paiva, Mariana Nunes, Bruno Peixoto, Giulia Gayoso, Raphael Logam, Ailton Graça, Zezé Motta e João Acaiabe, entre outros.