Discreta e pouco afeita a entrevistas, Clarice Lispector (1920-1977) não era do tipo que baixava a guarda facilmente. Na busca por não revelar completamente a complexa persona por trás dos livros, a escritora preferia que as obras falassem por si.
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Emicida, Gilberto Gil e Ailton Krenak falam sobre legado da músicaLivro revela a trajetória do pernambucano Heraldo do MonteCasa de Areia, com Fernandona e filha, vai ao ar nesta quarta'Minhas queridas' revela a angústia de Clarice Lispector longe do BrasilPor que Clarice Lispector, uma escritora de difícil leitura, é uma das autoras brasileiras mais citadas na internetDEDICATÓRIA
O primeiro contato de Fernando Sabino com Clarice Lispector ocorreu em 1944. Na ocasião, ele recebeu o primeiro livro dela, Perto do coração selvagem (1943), com dedicatória da autora. Entusiasmado, publicou uma resenha. Sabino tinha 20 anos, morava em Belo Horizonte e não conhecia Clarice pessoalmente.À época, ela morava em Nápoles, na Itália. Quando retornou ao Brasil, foi apresentada ao escritor mineiro por intermédio de Rubem Braga (1913-1990). A partir daí, se estabeleceu uma amizade intensa que resistiu até mesmo à distância. As cartas dela foram enviadas de Berna, na Suíça, e Washington, nos Estados Unidos, onde morou junto do marido diplomata, Maury Gurgel Valente. As de Fernando saíram do Rio de Janeiro e de Nova York.
Quando se conheceram, os dois eram autores iniciantes. Clarice tinha 23 anos e havia acabado de lançar seu romance de estreia. Já Fernando Sabino havia publicado em 1941, aos 17 anos, o primeiro livro, a coletânea de contos Os grilos não cantam mais.
Nas cartas, Clarice revela uma série de frustrações por estar longe de casa, o que a leva a sentir falta da bagunça e da efervescência do Rio de Janeiro.
“Berna é linda e calma, a vida cara e a gente feia; com a falta de carne, com o peixe, queijo, leite, gente neutra, termino mesmo dando um grito. Falta um demônio na cidade. Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minha angústia e procurando não fazer honrar a mim mesma”, desabafa Clarice ao amigo. Em outro trecho, revela: “A solidão que sempre precisei me é, ao mesmo tempo, insuportável.”
No entanto, um dos principais motivos da aflição da escritora era o silêncio em torno de seu segundo romance, O lustre (1946), qualificado por Oswald de Andrade (1890-1954) como “aterrorizante”. Para Fernando Sabino, amigo afetuoso, solidário e pragmático, o referido “silêncio” era “exagerado”.
As cartas estabelecem um diálogo livre. Clarice fala, por exemplo, da visita que fez às pirâmides do Egito, reclamando do comportamento dos turistas: “O problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista em um guia”, escreve ela.
A mudança para Washington foi positiva para a escritora, pois a cidade oferecia opções culturais e contava com uma comunidade significativa de brasileiros. Apesar disso, a percepção é bastante semelhante à que ela tinha sobre Berna: “É bonita segundo as várias leis da beleza que não são as minhas. Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”.
EVOLUÇÃO
A produção epistolar revela uma linha de evolução. No primeiro momento, dominam inquietações e angústias vagas. Mas, no decorrer da troca de correspondências, cresce a preocupação dos dois escritores em relação às suas próprias obras. As cartas revelam, portanto, uma amizade forjada na palavra.Prova disso é a presença do mineiro na vida de Clarice Lispector, o que não se limitou à troca de cartas. Fernando Sabino foi editor do romance A paixão segundo G.H., obra-prima de Clarice publicada em 1968.
DE: CLARICE
PARA: FERNANDO
“Falta um demônio na cidade. Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minhaangústia”
“Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”
CARTAS PERTO DO CORAÇÃO
• De Fernando Sabino e Clarice Lispector
• Record
• 208 páginas
• Preço médio: R$ 60