Uma história típica do universo de Jane Austen vista sob os olhos de hoje. A série Bridgerton, que estreia na sexta-feira (25), é, por mais de uma razão, a grande aposta da Netflix deste período. Marca também a estreia de Shonda Rhimes no streaming.
Primeira mulher negra a entrar no Top 10 das séries mais assistidas da TV americana – com Grey’s anatomy, cuja 17ª temporada entrou no ar em novembro, nos EUA –, há três anos ela assinou contrato para realizar oito produções para a Netflix (os valores são estimados entre US$ 100 milhões a US$ 150 milhões).
Na época, a saída de Rhimes e sua produtora, Shondaland, da tradicionalíssima ABC (onde ela lançou Scandal e Private practice, também narrativas com protagonistas femininas) causou rebuliço no meio do entretenimento.
STREAMING Liberdade criativa, grandes orçamentos, não se preocupar com classificação etária nem tampouco ter que fazer piloto para depois ser aprovado (ou não) como série e só depois ver se o público embarca na história. Essas são as principais razões pelas quais nomes de peso têm apostado no streaming – outro exemplo recente é o de Ryan Murphy, que está na Netflix.
Para começar a trabalhar no streaming, Shonda Rhimes delegou a função a outro. Ainda que seja a produtora-executiva de Bridgerton e tenha acompanhado todo o processo, quem comanda a trama é Chris Van Dusen, que começou a carreira como roteirista de Grey’s anatomy 15 anos atrás.
Rhimes teria entregado a ele um exemplar de O duque e eu, primeiro livro da franquia Os Bridgertons, saga inaugurada há 20 anos pela escritora americana Julia Quinn, que hoje conta com nove volumes. Publicada no país pela editora Arqueiro, Quinn tem no Brasil seu maior público de língua não inglesa.
Os Bridgertons são uma família da aristocracia inglesa do início do século 19. Viúva de um visconde, Violet Bridgerton tem recursos em excesso, como também filhos. É mãe de oito – quatro homens e quatro mulheres, cada qual com um nome que acompanha o alfabeto. Anthony, o mais velho, herdou tanto o título de visconde como a função de chefe da família; Hyacinth é a mais jovem da prole.
Violet tem uma árdua missão: fazer bons casamentos para os filhos. O ideal é que sejam por amor, como foi o dela, mas, acima de tudo, todos eles devem se consorciar com jovens de boas famílias da aristocracia. É esse o plano geral da saga – cada volume se dedica a um dos personagens –, que na adaptação televisiva ampliou várias questões.
Adaptações de romances de época não são comuns no universo das séries. À exceção de Outlander, não há outra produção do gênero de destaque na atualidade. Caso Bridgerton vingue – o que é dado como certo, dada a qualidade da produção –, poderá abrir caminho para novas temporadas e a criação de outros seriados do gênero.
Mas no mundo de 2020 não há muito sentido em fazer adaptação sem levar em consideração as mudanças que nos separam de dois séculos atrás. Bridgerton coloca uma rainha negra comandando o período da regência britânica (a diversidade do elenco é marca das produções da Shondaland). Interpretada por Golda Rosheuvel, Charlotte é uma soberana difícil, que sofre com a senilidade do marido e acompanha as fofocas da vida da alta sociedade com avidez.
Teria sido por meio do casamento real que Charlotte abriu caminho para que outros negros alçassem os postos mais altos da aristocracia britânica, explica a série em dado momento. Daí se inclui o protagonista, o duque de Hastings (vivido por Regé-Jean Page). Chris Van Dusen se valeu de um debate que acompanha a verdadeira rainha Charlotte (soberana da Grã-Bretanha e da Irlanda de 1761 a 1818): desde 1940, uma vertente de historiadores do Reino Unido defende que ela trazia distante ascendência africana.
AUSTEN Bridgerton é uma narrativa clássica, e Julia Quinn se mostra leitora atenta de Jane Austen. O casal central é formado por Simon Basset, o duque de Hastings, e Daphne Bridgerton (Phoebe Dynevor), a quarta filha (e primeira mulher) da numerosa família. Ele, filho único que nunca se deu com o pai, após longa viagem pelo mundo e a morte do progenitor, retorna a Londres para assumir o ducado. Ela, bonita, educada, inteligente, é a debutante perfeita para a temporada de bailes que acaba de ter início.
Um casamento para Daphne é o objetivo de sua mãe e de seu irmão, que começam a acompanhá-la na exaustiva e estressante série de eventos sociais. O duque, amigo de Anthony de longa data, não demora a ver que por baixo da aparente perfeição e frivolidade que a cerca, há em Daphne uma mulher forte e obstinada. Só que como o Sr. Darcy, de Orgulho e preconceito, o duque tem valores rígidos que o prendem a uma vida solitária.
Bridgerton e sua profusão de personagens conta com uma voz onipresente. Julie Andrews é a narradora da saga, fazendo as vezes de Lady Whistledown, autora do tabloide recém-lançado que analisa a fundo a vida pessoal dos que cercam a realeza. Com sua língua afiada, não poupa ninguém.
A misteriosa fofoqueira torna-se uma obsessão da sociedade inglesa. Eloise Bridgerton (Claudia Jessie), a filha rebelde de Violet, que não se conforma com o futuro de um casamento arranjado (tem pretensão de se tornar escritora, ser independente e nunca se casar), decide tomar para si a tarefa de desmascarar Whistledown.
A história principal e suas subtramas – amores impossíveis por diferença de classes, gravidez indesejada, relação homossexual, discussões feministas – ocorrem num cenário de sonhos. São bailes coreografados em que mães vão atrás de pretendentes para as filhas como a caça ao tesouro.
Apresentações de ópera se tornam desculpa para acompanhar como a sociedade age no espaço público – no privado, as máscaras caem e toda a pompa vai embora. Jardins de cores múltiplas servem como moldura para o desfile interminável de vestidos de luxo. Os diálogos são rápidos, bem-humorados, e a ação é incansável.
Daphne não demora a constatar o fardo que é ser mulher. Mesmo privilegiada, ela toma consciência de que sua função no mundo é se casar e procriar. Mas não se resigna. A personagem vai se modificando aos poucos. Boa parte dessa transformação se dá por meio do sexo, que ela, ignorante de tudo (não sabe nem como os bebês são gerados), vai descobrir aos poucos.
SEXO Bridgerton é pródiga em cenas de sexo, ora sutis, ora provocadoras, algo raro em histórias de época. Um dos episódios mostra várias sequências – na cama, nas escadas, no corredor. O ponto de vista é sempre feminino, o desejo da mulher é o que importa. As sequências foram filmadas como um balé de corpos. O sexo não está apenas no ato em si, mas em diálogos de alta combustão. Um deles, sobre masturbação feminina, destaca-se pela delicadeza.
À medida que episódios vão se sucedendo, Bridgerton, a partir de um romance açucarado, torna-se uma narrativa sobre personagens que desejam tomar as rédeas da própria vida. Até onde é possível, vale dizer, pois mesmo com liberdades, a série é ambientada dois séculos atrás. Tal escapismo, diante da realidade da pandemia que nos engole neste momento, pode ser o melhor presente deste Natal.
BRIDGERTON
A série, em oito episódios, será
lançada na sexta-feira (25), na Netflix
LANÇAMENTO
Arqueiro, editora de Julia Quinn no Brasil, lançou nova edição de O duque e eu (288 páginas) com a imagem da série da Netflix na capa. A autora vendeu 10 milhões de exemplares em todo o mundo, 1 milhão em nosso país. O romance está disponível em livro (R$ 39,90),
e-book (R$ 19,99) e
audiobook (R$ 27,99).