Para muitos artistas independentes, manter uma produção frenética é hábito comum. Afinal, isso garante sobrevivência e relevância, além de atrair público para os shows. Da mesma forma, há aqueles que se fixaram no mainstream, mas preservam essa mania, como o cantor e compositor Silva.
Em menos de uma década de carreira, ele lançou nove trabalhos, entre discos ao vivo e de estúdio. O nono, resultado de uma apresentação em Lisboa, chegou a público em maio passado, no início da pandemia, quando a produção do décimo, intitulado Cinco, já estava em andamento.
Recém-chegado às plataformas digitais, o novo álbum começou a nascer no início do ano, em momento anterior à COVID-19, quando Silva planejava encerrar o ciclo do disco Brasileiro (2018) e realizar alguns shows na Europa.
“A ideia era gravar no final do ano e lançar no primeiro semestre de 2021. Com a agenda de shows suspensa, decidimos antecipar tudo. A produção do trabalho tomou conta da minha quarentena e salvou minha mente, principalmente nas fases mais assustadoras da pandemia, quando a gente ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo”, conta ele.
Irmão
Confinado em casa e com tempo de sobra, Silva pôde trabalhar com tranquilidade as 14 faixas que compõem o disco, todas escritas em parceria com Lucas Silva, seu irmão e parceiro de longa data. Pela primeira vez, o músico participou de todo o processo do trabalho, até mesmo da mixagem, etapa em geral realizada por engenheiros e técnicos de som.
“Produzi todos os meus trabalhos, mas sempre corri da mixagem. Cobro muito de mim mesmo, um perfeccionismo. O estágio final da gravação tem uma parte muito técnica, mas também é muito musical. Estou feliz de conseguir participar dele, porque fez com que as músicas ficassem com a minha cara”, explica.
Outra característica marcante do disco é a imperfeição, tanto na voz quanto no áudio, que em alguns momentos soa “sujo”, cheio de texturas, remetendo à sonoridade do vinil. Silva explica que isso foi algo almejado e se deve à forma “100% analógica” com que a gravação foi feita.
“Gravamos com o suporte daquelas mesas grandes, antigas, cheias de válvulas e recursos que literalmente esquentam o som. Usamos uma bem conservada dos anos 1970, e o resultado lembra discos que curto muito, quando tudo era produzido de forma analógica”, comenta.
Diferentemente dos primeiros trabalhos do músico – Claridão (2012), Vista pro mar (2014) e Júpiter (2015) –, Cinco mantém a alma orgânica de Brasileiro, ao mesmo tempo em que expande os gêneros musicais explorados.
O novo disco traz faixas que passeiam por soul music, ska, jazz, bossa nova e samba. “São gêneros que sempre gostei de ouvir, mas não tinha coragem de trazer para minhas composições. A música ao vivo mudou a minha cabeça, principalmente os shows de carnaval que faço, com o Bloco do Silva, e na turnê do álbum Silva canta Marisa. Em termos de gênero musical, me permiti muito. Saí da minha caixinha mesmo”, conta.
Renovação
A isso ele também relega o tédio que passou a sentir em relação ao próprio trabalho, principalmente quando cai na estrada e precisa apresentar canções sucessivamente Brasil afora. “Fiquei de 2010 até 2015 ouvindo muitas referências eletrônicas. A partir daí, comecei a ouvir jazz e música brasileira, que não conhecia muito. Isso renovou a minha vontade de fazer música. É muito legal, porque estou descobrindo muitas coisas novas. Me permito, me deixo ir. Não sei dizer se vou continuar fazendo esse tipo de música nos próximos anos, não sou de planejar. O que sei é que em alguma hora esse álbum vai para a estrada e a experiência de tocá-lo ao vivo vai me dar ideias novas, mudar minha cabeça”, revela.
Divulgadas como singles para anunciar a chegada do álbum, Passou passou e Sorriso de agogô são bons aperitivos do que o trabalho apresenta nas demais faixas. A levada positiva se mantém até em canções cujo título parece o contrário, como Pausa para a solidão e Não vai ter fim.
No passado, as letras de Silva eram marcadas pelo minimalismo, ainda que cheias de boas sacadas. No novo trabalho, ele e Lucas evoluíram como letristas. Jogo estranho e Quimera são provas disso, com momentos que deixam transparecer ironia e deboche inéditos.
A virtuose fica bastante evidente em Você, de levada melancólica, mas ainda assim forte candidata a hit. “É que quando acordei de manhã/ Eu tentei te esquecer/ E esqueci que o querer é um mar turbulento/ Não tenho um alento, nem sei velejar”, diz um dos versos.
Outra promessa do álbum é Facinho, a segunda parceria de Silva com Anitta, que já colaborou com ele em Fica tudo bem, faixa do álbum de 2018. Criolo canta em Soprou, uma das favoritas do músico capixaba.
Altar
Quem coroa a lista de convidados é João Donato, parceiro de Silva em Quem disse?. “Brinco que deveria ter um altar aqui em casa para ele, que é um gênio. O conhecimento musical do João é muito elevado. Para mim, ele está no mesmo patamar de Tom Jobim e Dorival Caymmi. É uma das pessoas mais importantes da música brasileira e tê-lo no álbum é uma realização”, comemora.
Ao longo de quase uma década de carreira, Sillva acumulou parceiros – de Marisa Monte a Ivete Sangalo, de Clarice Falcão a Ludmilla, passando por Fernanda Takai e Lulu Santos. João Donato era a parceria dos sonhos, mas ele ainda tem outras em mente: Caetano Veloso, Tom Zé, Milton Nascimento, Arthur Verocai e MC Tha.
Ao lançar o álbum, Silva publicou um texto nas redes sociais dizendo que o trabalho representa “novo ciclo em minha identidade como pessoa e artista”. Sobre isso, ele explica: “Nunca estive tão confortável com meu próprio trabalho. Me sinto mais à vontade para ser o que sou e cantar o que gosto de cantar.”
Por mais que Cinco tenha sido criado durante um dos períodos mais tenebrosos da história recente, as canções trazem a leveza que o autor alcançou. “Em nenhum momento quis que a pandemia influenciasse no humor do disco. Estamos numa fase tão difícil, tão puxada, que quando alguém faz algo alegre é também uma forma de resistência.”
Direto no título, o quinto disco de estúdio de Silva mostra que o capixaba atingiu um ponto de maturação no qual consegue aliar autoria à abordagem pop. Nada óbvio, o resultado deve agradar a quem acompanha Silva desde a fase indie, mas também aqueles que chegaram mais tarde, quando ele já tinha estourado a bolha da música alternativa.
Cinco
De Silva
14 faixas
Farol Música
Disponível nas plataformas digitais
Discografia de Silva
Claridão (2012)
Vista pro mar (2014)
Vista pro mar ao vivo (2015)
Júpiter (2015)
Silva canta Marisa (2016)
Silva canta Marisa –
Ao vivo (2017)
Brasileiro (2018)
Bloco do Silva – Ao vivo (2019)
Ao vivo em Lisboa (2020)
Cinco (2020)