Jornal Estado de Minas

ATÉ QUE ENFIM!

Sete escritores escrevem bilhetes de adeus a 2020, o ano da pandemia

O convite foi para um bilhete de despedida para aquele que não deveria ter vindo como veio. Cada qual à sua maneira, sete escritores – os mineiros Cidinha Ribeiro, Jacques Fux, Leo Cunha e Luiz Ruffato, a carioca Mary Del Priore, o paulista Ignácio de Loyola Brandão e o gaúcho Fabrício Carpinejar – despedem-se deste ano com pequenas mensagens. Dizer até nunca mais é o que todos nós – independentemente das tristezas, maiores ou menores, todos as sentimos – desejamos a este 2020 agourento que chega hoje ao seu final. 

Prezado 2020,
“Eu tenho tanto pra te falar, mas com palavras, não sei dizer, como é grande o meu ódio, por você” – primeiramente, obrigado por ter nos livrado do Especial de Natal do Roberto Carlos, já não era sem tempo. Também agradeço por ter nos poupado da Simone, “então é Natal, e o que você fez” – afinal, os mais atentos ao que se passa no mundo – que não ficam jogando futebol ou participando da festa mórbida do “garoto Neymar”, enquanto mais de 200 mil famílias estão em luto – não fizeram sabiamente nada e nem ficaram com a consciência pesada





Obrigado por não permitir que as Olimpíadas de 2020 acontecessem: é sempre maravilhoso ver aqueles corpos perfeitos enquanto os nossos repousam descuidados no sofá – agora, pelo menos, grande parte do mundo está assim, sedentário por sua causa. Agradeço por fim por não nos oferecer tantas escolhas para 2021: desejo apenas que todos permaneçam vivos e que recebam duas doses da abençoada vacina. 

>> Jacques Fux

Dar adeus a 2020 é dar adeus a quase 200 mil mortos. É dar adeus a milhões de empregos.  É dar adeus a milhões de sonhos. É dar adeus à possibilidade de criar uma sociedade mais justa e igualitária. Enfim, é dar adeus às ilusões. Que venha, então, 2021, quem sabe poderemos reconstruir algo a partir dos escombros de 2020...

>> Luiz Ruffato

Sob o signo da morte, e de um Estado que é o seu maior aliado, 2020 está aí para nos lembrar de que pertencemos à mesma humanidade e ao mesmo planeta. O confinamento permitiu ver que se o individualismo crescente prometia mais soberania, ao contrário, ele revelou que o inferno é viver sem os outros. Donde a importância de cada um de nós se apropriar desta dolorosa experiência e, com lucidez, enfrentar o desafio de pensar a humanidade mais solidária. 





Apesar das perdas e danos, a tormenta que atravessamos é a prova de que a desconfiança na democracia não venceu. E a descida ao abismo vai revelar energia para lutar contra polarizações e em favor do coletivo. Energia para enfrentar a crise social e econômica que já germina e cujos efeitos estão em suspensão. Energia para encarar a crise moral que envenena a vida política com desdobramentos na vida social.

Contra o momento de medo e desconfiança que vivemos em 2020, façamos votos para que em 2021 recuperemos a confiança. Na etimologia, o verbo com-fiar remete a abandonar-se de boa-fé. A origem sublinha os laços entre confiança, esperança e crença. Sem ela, é difícil pensar a existência das relações humanas – as de trabalho, as de amizade ou as amorosas. Sem confiança é difícil construir um futuro ou um projeto que cresça com o tempo. Sem ela, a democracia não funciona, Sem seguir promessas demagógicas ou posturas carismáticas, vamos recuperar a confiança que nos faça acreditar em nossos próprios valores para construir um país mais justo, mais tolerante e solidário.

>> Mary Del Priore

Olá, 2020,
Fugindo, hein? Pensa que está autorizado a sair escondido, sem se despedir? Não está. Quero explicações, olho no olho. Lembra-se de sua chegada, seus primeiros minutos de vida?

As pessoas acreditaram que tudo seria diferente. Seriam felizes, realizariam muitos de seus sonhos, viajariam. Gastaram fogos de artifício. Iemanjá, coitada, levou meses jogando flores murchas de volta para as ondas.





Também fiz planos: tomar chá com as amigas aos sábados, pintar o cabelo, aprender a nadar, fazer plástica. Olha aí o que você fez! Nada deu certo. E agora quer fugir. Ai, ai, ai.
Mas, já que quer ir, vá. Adeus. Não lhe quero mal. Mentira, quero sim. Já vai tarde. E recomende a 2021 que seja menos penoso, traga vacina e saúde para a humanidade. Que traga um verdadeiro e próspero recomeço para o mundo.
Da sobrevivente,

>> Cidinha Ribeiro

Caro 2020,
Enquanto seguro uma das alças do seu caixão, confesso que me sinto um impostor. Quem sou eu para ter a honra de te enterrar? Não perdi meus pais, não fui intubado, não fiquei sem fôlego nem emprego, não fechei as portas da minha empresa, não deixei de estudar, não peguei ônibus lotado com medo de encostar no passageiro ao lado, não me faltou água e sabão para limpar as compras, não me faltou dinheiro para a compras.

No meu dia-a-dia, não convivi com ninguém que achincalhou a ciência, que conspirou contra a vacina, que esgoelou contra as máscaras, que sabotou o isolamentou ou promoveu festas clandestinas. Não tive que ler mensagens alucinadas no zap, defendendo poções milagrosas ou me alertando que a pandemia não passa de uma imensa conspiração chinesa, mundial ou até, quem sabe, interplanetária.





Enquanto te arrastamos lentamente rumo ao breu da história, percebo que sofri menos que a maioria das pessoas. Isso não diminui, porém, meu alívio em ver tua cova aberta. Adeus!

>> Leo Cunha

Que se vá com esse governo espantosamente medíocre e doloridamente genocida. Bom foi no início da pandemia, em dia sem trânsito e sem fábricas, eu ter contemplado o céu mais claro e transparente desta cidade (São Paulo) em meus 84 anos de vida. E também ter achado uma foto autografada e deslumbrante de Kim Novak,  que entrevistei em 1960.

>> Ignácio de Loyola Brandão

Que não seja apenas uma virada de ano, mas uma guinada, uma metamorfose, uma transformação, uma revolução em nosso comportamento.

Que possamos sair da indiferença e do egoísmo em direção à compaixão e à generosidade.

Que todos os abraços não dados sejam devolvidos com correção.

Que todos os aniversários não comemorados sejam soprados em dobro.

E, de tanto evitar o contato, enfim, que tenhamos aprendido a nunca mais adiar o amor.

>> Carpinejar


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