O cantor paraibano Genival Lacerda foi um dos entrevistados pelos jornalistas Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues para a elaboração do livro O fole roncou! Uma história do forró, lançado pela editora Zahar em 2012.
“O meu suingue, o meu balanço, o meu jogo de cena, a criatividade é minha. Sempre criei as minhas coisas, sempre fiz do meu jeito”, destacou, em entrevista em seu apartamento no Recife, em 2010. O trecho abaixo reconstitui a trajetória do maior sucesso do cantor, Severina Xique-Xique, com letra escrita por João Gonçalves, conterrâneo do intérprete. “Eu estava batalhando há uns trezentos anos. Com Severina, acabou a miséria!”, disse Genival.
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O caminho de “Severina Xique-Xique” não foi fácil. João Gonçalves conseguiu mostrar a música para Marinês, que a rejeitou: “Não dá pra mim. Esse negócio de butique pega mal.” Zé Calixto também não quis saber de levar Severina para o repertório de Messias Holanda: “Se eu gravar essa música, eu apanho da mulher lá em casa.” Mas seria Messias o responsável pelo atalho para o sucesso. Ele sugeriu a Gonçalves entrar em contato com Genival Lacerda:
— Olha, Genival tá precisando de música, dê umas para ele.
Os dois tinham participado da coletânea O fino da roça: “Minha Margarida”, de Gonçalves e José Matias, fez companhia a “Feijoada do Moraes” e “Vendedor de tapioca”, ambas assinadas por Genival. Mas chegara o momento do encontro pessoal. Em 1974, Gonçalves foi até a casa de Genival, na rua Carlos Gomes, no bairro de Zé Pinheiro, zona leste de Campina Grande. Levou violonista para acompanhá-lo enquanto mostrava as músicas. Iniciou a oferta com sua maior aposta:
— Eu tenho uma música, mas ninguém quis...
De imediato o dono da casa retrucou:
— Então não presta.
Mas João insistiu e cantou a música até o fim. Então Genival Lacerda foi apresentado a “Severina Xique-Xique”. Gostou do que ouviu, falou que faria algumas adaptações para o seu jeito de interpretar. No final, o veredito:
— É, isso aí eu gravo.
O cantor também aprovou outras músicas, entre elas “Vamos brincar de roda”, “A filha de Mané Bento”, “O culpado foi o boi”. João Gonçalves conta que fez a seguinte proposta:
— Se você gravar mais de três, eu lhe dou parceria em todas elas.
Genival topou:
— Se é assim, eu vou gravar. Boto meia-sola, é minha e sua.
Acordo feito, acordo pronto para ser cumprido. Com “Severina Xique-Xique” e outros trunfos na algibeira, Genival Lacerda partiu para o Rio de Janeiro. Mostrou a música no programa do radialista Adelzon Alves, que de imediato garantiu:
— Essa música vai ser um sucesso em todo o Brasil, Genival.
— Será?
— Vai, sim. E sabe por quê? Porque ela promete tudo.
Genival também sabia do potencial de êxito da composição. Tinha testado “Severina” em shows durante comícios no interior da Paraíba, a reação tinha sido pra lá de entusiasmada. Era o seu maior trunfo, teria que dar o passo certo. Quando Abdias o procurou e afirmou, “Essa eu gravo”, teve que ouvir de volta:
— Não grava, não. Eu pelejei para vir pra CBS e você não me quis. Vou pra Copacabana gravar com Oséas.
Ele tinha se lembrado de que Oséas Lopes era o diretor artístico da gravadora fundada em 1948 no Rio de Janeiro, mas que desde os anos 1960 passara a funcionar no bairro de Taboão, em São Bernardo do Campo. Apesar de ter conseguido ao menos um grande sucesso em 1965 com o disco Aqui mora o xaxado, do Trio Nordestino, graças a músicas como “Vamos simbora neném” e “Como tem Zé na Paraíba”, a Copacabana não tinha o som regional como especialidade. Pelo contrário: emplacara sucessos de brasileiros cantando em inglês, como “Feelings”, de Morris Albert, e músicas mais balançadas, como as de Bebeto e Benito di Paula.
O que Genival não sabia é que Oséas enfrentava forte resistência dentro da Copacabana para contratá-lo e a outro cantor popular, Fernando Lelis. Para Adiel Macedo, um dos donos do selo, nenhum dos dois tinha vocação para o sucesso, e a insistência de Oséas era constante fonte de atrito. Sobre Lelis, portador de braço mecânico, ouviu a negativa: “Não vou gravar o Capitão Gancho.” E, sobre Genival, idêntica dose de crueldade:
— Um disco desse sujeito barrigudo e feio vai envergonhar a Copacabana. Não lanço de jeito nenhum.
Enquanto isso, o cantor seguia na luta para emplacar “Severina”. Tinha apoio do cantor e sanfoneiro Bastinho Calixto, irmão de Zé Calixto e que trabalhava com Oséas na Copacabana:
— Grave Genival Lacerda que ele está com um repertório muito bom!
Só que Oséas teria de dobrar a resistência do Trio Nordestino, a principal atração em vendas do cast regional. Os três não queriam Genival como colega de elenco. Não se davam bem com ele. Lindú avisou:
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Mestre do duplo sentido e ícone do forró, Genival Lacerda morre de COVIDNas redes sociais, famosos lamentam morte de Genival LacerdaGenival Lacerda foi um intérprete versátil, muito além do personagem Genival Lacerda morre no Recife, vítima da COVID-19, aos 89 anos— Olha, Oséas, se você gravar com ele, o Trio Nordestino sai da Copacabana.
Dias depois do ultimato, procurou Lindú e fez uma proposta:
— Eu tô sobrecarregado de trabalho. Quero fazer de você o meu assistente de produção.
Lindú aceitou o convite. Alguns dias depois, o trio entrou na sala de Oséas e comunicou:
— Chefe, em comum acordo, nós resolvemos que o senhor pode contratar Genival. Já esquecemos da bronca que existia.
Enfim, o cantor pôde entrar em estúdio, com Chiquinho do Acordeon na sanfona e Cobrinha no zabumba. Reservou o estúdio Musidisc, na Lapa, para o esquema de produção característico: sessenta horas para gravar e mixar o LP. Gravou também Fernando Lelis, com a música “Um par de aliança”. Assim foi feito, e nasceu o disco Aqui tem catimberê. Na contracapa, para não deixar dúvidas, bem ao lado, o epíteto “O Senador do Rojão”. “Severina Xique-Xique” abre o lado A. Outra parceria de Genival com João Gonçalves, “A filha de Mané Bento”, vem na sequência. Antonio Barros comparece com “Para papagaio”. “Tenente Bezerra”, de Gordurinha, encerra o disco.
Na capa, Genival está de pernas trocadas, calça laranja, camisa estampada com detalhes roxos e o indefectível chapéu coco. No rosto, uma expressão de matuto aturdido. Nos sulcos, um cantor em ponto de bala. A versatilidade do intérprete é atestada a cada faixa. A começar por “Severina”, que somente Genival regravaria, segundo suas contas, 38 vezes. O fole ronca antes de o cantor iniciar os versos que o tornariam conhecido em todo o país. A sanfona esmerilha enquanto Genival conta a história da moça cobiçada por Pedro Caroço. Em meio à letra de João Gonçalves, o cantor insere falas com a dose inconfundível de malícia, concretizando a parceria:
Severina, minha filha,
Não vá na onda de Pedro.
Óia, ele só tem interesse em você
Porque você tem uma butique.
Óia, mas você querendo um sócio,
Óia aqui seu Vavá...
O som de um sorriso maroto complementa as intenções do “seu Vavá”. Mas não é apenas nos cacos que Genival mostra seu arsenal. Cada repetição da frase “É na butique dela” sai de um jeito. Chega a rasgar a voz para enfatizar o objeto da cobiça. E, antes de encerrar, pouco antes de reparar na formosura da moça (“Ai meu Deus, mas Severina tá bonita mesmo”), deixa encaminhada a proposta:
Ô Severina, como é?
Resolve minha filha.
Se tu quiser passa lá...
Arremata com a risada que se tornaria uma de suas marcas registradas: “Rá-rái!” (...)
“Severina Xique-Xique” ainda enfrentaria um derradeiro obstáculo antes de ser conhecida em todo o Brasil. Oséas Lopes tinha gravado os discos de Genival e Lelis sem consultar a direção geral da gravadora, em São Paulo. Ao entregar os teipes, a surpresa: um dos donos, Adiel Macedo, ficou furioso com o procedimento porque não gostava de nenhum dos dois cantores:
— Essas gravações são uma vergonha!
Ameaçado de demissão, Oséas pediu a interferência de um amigo, o divulgador, Timóteo Martins, para convencer Adiel a ouvir as fitas. Escutaram as gravações. Adiel continuou irredutível:
— Essas gravações são da pior qualidade, não vou lançar!
Foi quando Timóteo apostou todas as fichas nos contratados de Oséas:
— Seu Adiel, eu garanto que os dois artistas vão ganhar Disco de Ouro em menos de sessenta dias!
Surpreso com a afirmação incisiva de um dos responsáveis por emplacar as músicas nas estações de rádios, Adiel enfim assentiu e autorizou a feitura dos LPs. As semanas se passaram. Antes do prazo estipulado por Timóteo, Genival recebeu convocação de Rosvaldo Cury, um dos donos da Copacabana:
— Venha pra São Paulo.
— O que foi?
— Você vai viajar o Nordeste todinho. Depois vai de Manaus até São Paulo. Fazer todas as capitais. O disco já estourou. Vendeu 35 mil LPs.
— Mas, rapaz, eu nunca vendi isso...
— Isso é só o começo. A gente acha que chega a 500 mil.
O cantor paraibano foi fazer divulgação em jornal, rádio, televisão, circo — onde tivesse um palco, lá estava Genival. Ao chegar ao programa de Silvio Santos, deu azar. Teria que ficar de fora, por determinação do apresentador a um dos produtores:
— Olhe! Avisa ao rapaz da Paraíba que não dá para entrar agora porque estamos com doze minutos de atraso.
O produtor argumentou:
— Esse rapaz eu conheço, Silvio. O nome dele é Genival Lacerda: é um showman. Ele canta, dança, faz humorismo, faz tudo.
— Tá, então chama ele.
Genival entrou em cena para dublar “Severina Xique-Xique”. Sabia que teria de agradar ao auditório — e rápido. Como um palhaço de circo, resolveu testar um número. Se a platéia reagisse com entusiasmo, iria em frente. Pegou a pança proeminente e a usou como seu par de dança. A plateia adorou: as “colegas de trabalho” do apresentador gargalhavam toda vez que ele mexia na barriga. Silvio também gostou. Ignorou o atraso e mudou de ideia:
— Dá para cantar mais uma!
Veio “A filha de Mané Bento”. Mais aplausos, mais gargalhadas. Quando Genival terminou, escutou o convite:
— Domingo você vem de novo, canta mais três músicas.
Sete dias depois, ele voltou ao Silvio Santos. Bisou “Severina” e “A filha de Mané Bento”, agora acrescidas de sucesso anterior, a nada sutil “Seu reverendo”. Genival, por cinco semanas consecutivas, participou do programa dominical mais popular da TV brasileira. Para todo o Brasil, se cristalizou a imagem do forrozeiro extravagante e assanhado. O país foi apresentado às marcas registradas de Genival Lacerda: chapéu coco, camisas coloridas, sandálias sob encomenda, lenço no pescoço, calça bem engomada, sorriso largo, olhar malicioso; a pança e a dança.
Era, enfim, “o homem-espetáculo” sem igual que o produtor João Borges apresentava na contracapa do disco de 1969, capaz de “conquistar facilmente qualquer plateia, onde quer que esteja”. Apaixonado por “Severina Xique-Xique”, o Brasil inteiro agora conhecia — e consagrava — o Rei da Muganga. Genival só não gostava quando o acusavam de gravar músicas apelativas. O sangue ferveu quando ouviu pela primeira vez a acusação de ser o principal intérprete do “pornoxaxado”:
— Minhas músicas têm um duplo sentido sadio, não ofendem a opinião pública. Sempre gravei assim, sem apelar. Quando digo “Ele tá de olho na butique dela”, não tô falando palavrão. E tem mais: quem faz pornoxaxado é a mãe!
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Trechos do livro “O fole roncou! Uma história do forró” (Zahar, 2012, 472 páginas), de Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues