Antropólogo e filósofo, Claude Lévi-Strauss tem uma citação profunda, no recente livro de Piero Sbragia, Novas fronteiras do documentário: Entre a factualidade e a ficcionalidade: “Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele”. Na afirmação, o mestre faz reflexão sobre o filtro ético, um dos pilares do livro e apreensão do cineasta em torno da realidade.
Mera coincidência ou indício de desenvolvimento de um país, Lévi-Strauss nasceu na Bélgica, nação atenta ao cinema a ponto de ter uma modificação de lei nacional gerada pela exibição de filme que tratava de importunação sexual. Femme de la rue, o longa, foi uma das inspirações de Chega de fiu-fiu (2018), codirigido por Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, sobre assédio às mulheres. Amanda Kamanchek, entrevistada para a realização do livro que propõe olhar sobre a moderna feitura de documentários, destaca, em tempos de fake news, a fundamentação de cinema que busca o jornalismo norteado pela ética.
O Brasil, num contraponto à Bélgica, por insistência, numa realidade de sufocamento à arte, tem aguerrida legião de documentaristas de plantão. Vence, pela resistência, a lida difícil das pessoas que tendem “a rejeitar a realidade”, como destaca no livro o documentarista Eduardo Escorel.
Morto há quase sete anos, Eduardo Coutinho descrevia a expressão do documentário como circunscrita a um “gênero maldito”. No recente 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, venceu o “maldito”: dos seis longas apresentados na mostra competitiva, cinco foram documentários. Um indício do vigor dos diretores exaltados no referencial livro de Piero Sbragia.
Que conjuntura explica o crescente interesse por documentários?
Imagino que o interesse aumenta na medida em que passamos a viver uma realidade que mais parece um filme distópico de ficção. A conjuntura social e política hoje no Brasil é uma mistura de Mad Max com Terra em transe. Lidar com essa realidade distópica exige de todos nós um apreço maior por entender o real e, basicamente, esmiuçar as diferentes narrativas construídas que nos são apresentadas diariamente nas redes sociais, nas nossas bolhas e no jornalismo... Isso acontece também nos Estados Unidos, na Hungria e em todos os países em que a extrema-direita chegou ao poder e apresenta um projeto de reescrever a história e trocar fatos por mentiras, no melhor estilo 1984, de George Orwell.
Há diferenças marcantes entre mulheres e homens quando decidem dirigir documentários?
Não vejo, necessariamente, grandes diferenças entre os gêneros atrás das câmeras. Ambos são capazes de produzir bons filmes e filmes horrorosos também. Mas, particularmente, em documentários percebo que a mulher consegue ter mais sensibilidade nas narrativas audiovisuais. O diretor homem me parece mais preso às convenções tradicionais narração em off, de cabeças (entrevistados) falando. Quando penso em revolução no formato penso em Susanna Lira, Eliza Capai, Lucia Murat, Carol Benjamin. As mulheres são menos quadradas do que os homens para contar boas histórias.
O que pode ser dito da filmografia do Vladimir Carvalho, um dos mais importantes diretores da capital do país?
Vladimir Carvalho fez o roteiro e foi assistente de direção de Linduarte Noronha em Aruanda, o documentário responsável pela primeira grande revolução do gênero no Brasil. Basicamente por flertar com elementos de ficção e oferecer uma nova abordagem ao documentário, na contramão do que europeus e norte-americanos faziam na época (virada da década de 1950 para 1960) com aquela ideia do Cinema Verdade e da pouca intervenção nas filmagens. Vladimir foi um gênio atrás das câmeras e também um importante pensador do cinema, alguém com generosidade para fazer cinema e também ensinar cinema. Não bastasse o pioneirismo de Vladimir em Aruanda, o cineasta também esteve envolvido na segunda grande revolução do documentário no Brasil: Vladimir Carvalho produziu Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Precisa mais? Sem Vladimir, o documentário contemporâneo brasileiro não seria referência hoje.
Há unidade ou viés temático assemelhado na safra de longas nacionais de hoje?
Não enxergo, necessariamente, um viés temático nos documentários contemporâneos realizados no Brasil. Mas percebo claramente um viés mais democrático e com diversidade, na proposição de temas ou até mesmo entre quem realiza os filmes. O documentário parece furar um pouco aquela patota do macho-branco-de elite que produz filmes no Brasil. Na ficção, ainda é assim; mas nos documentários, não. Vejo muitas mulheres na direção, negros e negras na direção, cineastas LGBTQI+, cineastas periféricos.
Evidente que as condições de trabalho não são as mesmas, muito menos a grana por trás dos filmes. Mas justamente o fato de o documentário precisar de menos dinheiro para ser produzido do que a ficção torna o gênero mais acessível aos realizadores e realizadoras. Isso sem falar de jovens cineastas que realizam filmes tão impactantes quanto cineastas experientes. Diógenes Muniz levou o É Tudo Verdade 2020 com seu primeiro filme, Libelu – abaixo a ditadura, e com apenas 34 anos.
Evidente que as condições de trabalho não são as mesmas, muito menos a grana por trás dos filmes. Mas justamente o fato de o documentário precisar de menos dinheiro para ser produzido do que a ficção torna o gênero mais acessível aos realizadores e realizadoras. Isso sem falar de jovens cineastas que realizam filmes tão impactantes quanto cineastas experientes. Diógenes Muniz levou o É Tudo Verdade 2020 com seu primeiro filme, Libelu – abaixo a ditadura, e com apenas 34 anos.
Que linguagem tem sido demarcada nos documentários produzidos pela realidade da pandemia do coronavírus?
A estética de videochamada, com a tela dividida em diversos pequenos quadradinhos, tomou de assalto documentários, lives, entrevistas jornalísticas, mesas redondas. Ao mesmo tempo que no início da pandemia mostrou-se uma opção ágil de entrevista, sinto que, depois de quase um ano de uso exaustivo, essa possibilidade me parece esgotada. Ainda assim, temos documentários interessantes surgindo. Me cuidem-se!, o filme processo de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, nasceu na pandemia, foi gravado pelos próprios personagens e os diretores, depois de montarem um primeiro corte. Agora, eles farão sessões virtuais para um debate coletivo sobre a montagem da obra. Será que essa vai ser uma tendência daqui pra frente? Será que cada vez mais os documentaristas farão filmes processos como esse? O documentário é, definitivamente, a prova de que não se faz um filme sozinho. Documentário é coletivo, e é processo.
Como a pandemia afetou o cinema documental?
A COVID-19 descortinou dois tipos de documentários: filmes que buscam dialogar com a memória e o passado para tentar compreender o presente e filmes que são produzidos a partir de um processo coletivo, como Me cuidem-se!, e Coronation, de Ai WeiWei. É interessante perceber como a pandemia afetou diretamente Hollywood e os blockbusters, mas não afetou tanto os documentários. Primeiro, porque já era difícil para uma obra documental encontrar espaços no cinema e segundo porque o consumo em streaming tem proporcionado novas possibilidades até para cineastas consagrados.
Seria o caso de quem?
Com Sertânia, por exemplo, Geraldo Sarno teve em 2020, em plena pandemia, a maior audiência da carreira. Por baixo, pelo menos 30 mil pessoas viram sua obra em diversos festivais on-line. Aos 82 anos e inserido entre os pilares do cinema brasileiro, Geraldo tem sido descoberto pelos jovens, pelos estudantes e por toda uma nova geração de brasileiras e brasileiros. Se não fosse a pandemia, Sertânia teria todo esse alcance? Dificilmente.
Se nos filmes de ficção a pandemia afetou diretamente o processo de filmagem, nos documentários é possível alternativas. Eduardo Escorel, por exemplo, está montando o próximo filme, construído a partir de material de arquivo, remotamente com outra montadora. O processo é mais lento, mais demorado, porém, é possível. Por isso, acredito que o documentário vai ser responsável por uma nova retomada no cinema brasileiro, nesse Brasil pandêmico, desgovernado e sem editais. Os documentários vão resistir a tudo isso!
Se nos filmes de ficção a pandemia afetou diretamente o processo de filmagem, nos documentários é possível alternativas. Eduardo Escorel, por exemplo, está montando o próximo filme, construído a partir de material de arquivo, remotamente com outra montadora. O processo é mais lento, mais demorado, porém, é possível. Por isso, acredito que o documentário vai ser responsável por uma nova retomada no cinema brasileiro, nesse Brasil pandêmico, desgovernado e sem editais. Os documentários vão resistir a tudo isso!
NOVAS FRONTEIRAS DO DOCUMENTÁRIO: ENTRE A FACTUALIDADE E A FICCIONALIDADE
. De Piero Sbragia
. Coleção Mais que Mil Palavras
. Chiado Books
. 484 páginas
. R$ 46 (https://linktr.ee/Fronteiras)