Jornal Estado de Minas

BIOGRAFIA

Livro conta (quase) tudo o que você sempre quis saber sobre Woody Allen

“E espero que não tenha sido esta a razão pela qual você comprou este livro.” Estamos na página 162, quase a metade das 328 de Woody Allen: Uma autobiografia (Globo Livros), e o próprio se sai com esta. Bem, neste início de 2021, não é possível que alguém que tenha se deleitado com seus filmes resolva dedicar seu precioso tempo para tentar encontrar algo sobre o relacionamento dele com Soon-Yi, sua mulher desde dezembro de 1997 – casamento às escondidas, em Veneza.





Há quase 29 anos, desde que Mia Farrow descobriu, em cima da lareira, fotos de Polaroid de sua filha adotiva nua na casa de seu então namorado, o relacionamento com a jovem 35 anos mais jovem foi devassado pela imprensa. E há quase três décadas Woody Allen, 85 completados em 1º. de dezembro (na verdade, em 30 de novembro, como ele revela no livro, já que seus pais decidiram mudar a data, porque ele veio ao mundo quase à meia-noite), paga caro por ter encontrado, de uma maneira nada ortodoxa, o “amor de sua vida” (palavras dele).

O movimento #MeToo, que explodiu mundo afora em outubro de 2017, implodiu várias carreiras com denúncias de assédio e agressão sexual. O movimento nasceu em decorrência de reportagens publicadas no jornal The New York Times e na revista New Yorker, denunciando o então megaprodutor de Hollywood Harvey Weinstein. 

A reportagem da tradicional revista foi escrita por Ronan Farrow, filho biológico de Mia Farrow com Woody Allen. Em 2013, no entanto, a atriz afirmou que Ronan, na verdade, seria filho de Frank Sinatra – o que até hoje não se comprovou.





Voltando a 1992, logo após a descoberta do romance entre Woody Allen e Soon-Yi Prévin, Mia Farrow denunciou Allen de abusar sexualmente de Dylan, uma de suas filhas adotivas, na época, com 7 anos. A Justiça, após longa investigação, concluiu que não havia evidências que sustentassem uma denúncia, e o caso foi encerrado sem acusação contra Allen. Cada qual seguiu sua vida, até 2018, quando Dylan, agora uma mulher na casa dos 30 anos, com quem Allen nunca mais teve contato, foi para a imprensa e reafirmou o abuso. 

Protestos


“Pária tóxico” e “ameaça à sociedade” (novamente palavras dele), Allen teve as portas fechadas. Até a publicação da autobiografia foi abortada nos EUA pouco depois de ser anunciada pelo Grupo Editorial Hachette, porque funcionários da editora ameaçaram demissão em massa, caso o projeto seguisse adiante. Em seu país, o livro acabou saindo pela Arcade.

Então, retornando à página 162, a razão para ler a autobiografia de Woody Allen pode não ser o escândalo que marcou o fim de seu casamento com Mia Farrow. Mas não há como falar do cineasta sem abrir grandes espaços para abordar o processo que cancelou, para usar um termo corrente, sua carreira. E ele mesmo dá muita atenção a isso, dedicando quase um terço da biografia ao assunto.





Contudo, definitivamente, há muito mais do que isto no livro. São oito décadas de vida contadas à maneira Woody Allen, um escritor, ele mesmo diz, antes de ser diretor de cinema. E escreve como ninguém. Por vezes, os casos parecem roteiro de filme. Em outras, o leitor sente como se estivesse conversando com ele. Os melhores momentos reservam gargalhadas.

Ainda que obedecendo o caminho cronológico das biografias, Allen retira qualquer possibilidade de enfado com a parte inicial, quando os autores do gênero costumam apresentar infância, vida familiar etc do personagem antes da fama. Autodepreciativo o tempo inteiro, ele se apresenta como o oposto do que seu physique du rôle insinua.

Os óculos, ele logo observa, lhe dão um ar de intelectual que nunca foi. “Gente, vocês estão lendo a autobiografia de um iletrado misantrópico que adora gângsteres”, ele escreve, logo no início, como se quebrasse a quarta parede. Não havia livros na casa dos Konigsberg, família judia de classe média do Brooklyn, com um pai fanfarrão que lhe fazia as vontades e uma mãe trabalhadora, amorosa, “mas não fisicamente atraente”, ele escreve, antes de comparar sua progenitora com Groucho Marx. Os pais eram ruidosos e discordavam em tudo, “exceto Hitler e meus boletins”. 





Fracassos


Péssimo na escola, um atleta (a paixão da vida inteira é o beisebol) apenas mediano na juventude, um músico medíocre, mesmo com uma dedicação acima da média (ainda hoje, ele se impressiona com as plateias nas apresentações de seu grupo de jazz), Allen fracassou em quase tudo o que fez. Mas ele tinha consciência, desde muito jovem, que, a despeito da leitura pífia, sabia escrever.

Também sabia que a vida que queria para si não seria No Brooklyn natal – seu desejo era o outro lado. Manhattan foi chegando aos poucos. Fascinado por esquetes cômicas, ainda na escola enviava piadas para os jornais. Foi descoberto, ganhou um agente, começou a escrever para programas de TV, tornou-se comediante, entrou para a faculdade de cinema (da qual foi expulso, já que não ia às aulas) e, quando se deu conta, estava dirigindo filmes. 

Allen não se considera um grande diretor, não gosta de fazer várias tomadas, prefere sair do set e ir direto para casa assistir a uma partida de beisebol na TV. “Trabalho duro, um pouco de talento, muita sorte, grandes contribuições dos outros” é como define o resultado de sua trajetória. 





No livro, destaca vários profissionais, da frente e de trás das câmeras, que estiveram com ele em seus filmes. Também fala de seus pares, principalmente ídolos, como Ingmar Bergman (o maior deles), Federico Fellini (a quem dispensou várias vezes no telefone em Roma, achando se tratar de um trote), François Truffaut (com quem dividiu o mesmo professor de línguas). 

Conta, sempre com leveza, como foi o processo de filmagem da maior parte dos filmes que dirigiu – inclusive os 10 com Mia Farrow, a quem dá o devido crédito em obras como A rosa púrpura do Cairo (1985) e Hannah e suas irmãs (1986). Dá vontade de rever e ler histórias de bastidores da produção de longas como Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) e Manhattan (1979). 

Allen não lê nenhuma crítica sobre trabalhos seus, desde A última noite de Bóris Grushenko (1975). Não revê tampouco nenhum filme que dirigiu depois de finalizado. E, como já era sabido, tem horror a prêmios, não vê nenhum sentido neles. 





Nunca fez parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, nunca foi a uma cerimônia do Oscar e, quando ficou sabendo que Noivo neurótico havia levado quatro estatuetas, incluindo as de melhor filme, diretor e roteiro, teve a mesma reação de quando soube que Kennedy havia levado um tiro fatal. Prestou atenção na TV por dois minutos e logo voltou a escrever – sempre em máquina de datilografar, já que não sabe sequer ligar um aparelho de televisão, quanto mais usar um computador.

Pânico


Cheio de neuroses, tem dificuldade de entrar em qualquer lugar (mesmo que seja a casa de um amigo); odeia o campo (por isso declinou do convite de Bergman para passar uma temporada em sua Ilha de Faro, no Mar Báltico); e tem pânico de avião.

Não se furta a descrever as beldades que dirigiu. Scarlett Johansson, que só fez Match point (2005) porque Kate Winslet declinou na última hora, não é só “talentosa e bonita, mas sexualmente radioativa”.





As mulheres com quem se relacionou ocupam boas páginas do livro. Da primeira mulher, Harlene, com quem se casou aos 20 anos (ela tinha 17), passando por Louise Lasser, uma paixão avassaladora, uma união devastadora de mais de uma década (são amigos até hoje), a Diane Keaton, namorada de juventude que se tornou uma das pessoas mais próximas a ele.

O tom ora jocoso, ora amoroso e nostálgico com que Allen alimenta sua história esmorece quando ele chega ao drama Mia Farrow, “uma pirada a seguir com um plano de vingança”. Aqui, a leitura se torna sombria. Houve vários “sinais vermelhos”, ele diz, o relacionamento de 13 anos já tinha minguado quando ele se envolveu com Soon-Yi. 

O rancor fica latente principalmente na parte final, quando ele enumera quem lhe deu as costas – carrega bastante mágoa do The New York Times – e os que lhe apoiaram – Alec Baldwin, Javier Bardem, Blake Lively, Pedro Almodóvar, Isabelle Huppert, Catherine Deneuve, entre eles. Mas tem claro que sua autobiografia, lançada no outono de sua vida, não deverá mudar a opinião de ninguém. “Melhor do que viver nas mentes e no coração do público é viver no meu apartamento.” 


WOODY ALLEN: A AUTOBIOGRAFIA
Woody Allen
Tradução: Santiago Nazarian
Globo Livros ( 328 págs.)
R$ 49,90 (livro) e R$ 32,90 (e-book)




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