Pedro Galvão
Foram 40 anos na estrada, com pelo menos 10 álbuns de estúdio lançados, alguns ao vivo e uma extensa lista de colaborações com grandes nomes da música brasileira. O ponto final na trajetória do grupo Boca Livre veio neste mês, após uma divergência entre seus integrantes em relação à vacina contra a COVID-19.
O violonista e vocalista Zé Renato e o multi-instrumentista Lourenço Baeta optaram por deixar a banda, que seguirá as atividades com os membros-fundadores Maurício Maestro e David Tygel.
Nos últimos anos, como se sabe, as tensões da política nacional vêm se refletindo nas relações interpessoais. Desde pequenas indisposições até rompimentos definitivos viraram rotina entre grupos de amigos, familiares e colegas de trabalho devido a posicionamentos ideológicos cada vez mais demarcados em questões cotidianas.
Diante da grave crise ocasionada pela pandemia do novo coronavírus, a chamada "polarização" ganhou novos contornos e afetou também o ambiente artístico, como foi o caso do grupo vocal e instrumental Boca Livre, um dos mais longevos em atividade no país dentro do estilo.
A separação foi comunicada na noite de sábado passado (16/1), nas redes sociais, pela até então empresária da banda, Memeca Moschkovich, que também se desligou. Na nota divulgada, as razões não eram esclarecidas. O texto informava apenas a saída dela, de Zé Renato e de Lourenço Baeta, agradecendo aos fãs pelo carinho “nesses 40 anos de carreira”. Mas o motivo da cisão foram as divergências políticas que tiveram a vacina como estopim.
“Eu e o Zé Renato fomos criados com as mesmas ideias, temos as mesmas filosofias e objetivos de vida. Estávamos aceitando toda essa situação e vivendo democraticamente desde 2018. Mas agora não é mais questão de lidar com democracia, é uma questão humanitária”, diz Memeca.
“Como o Maurício (Maestro) é contra a vacina, é público nas redes sociais dele, isso vai completamente contra as nossas ideias. E aí não dá para conviver. Quando falta oxigênio no país, é muito difícil estar ao lado de uma pessoa que pensa assim. A última lei da cultura se chama justamente Aldir Blanc, que morreu de COVID-19. Então tomamos essa decisão, que não foi nada impetuosa”, comenta a empresária.
Situação insustentável
Segundo ela, o grupo tinha outras divergências ideológicas, mas vinha tentando separá-las do trabalho. “Estávamos tentando achar uma forma de conviver pela música, pela história do grupo, que é linda, mas todo mundo tem direito a mudar de opinião. Maurício reformulou as crenças dele de um tempo para cá e ele tem todo o direito de pensar o que quiser, mas se tornou uma situação insustentável, até pela própria saúde do grupo, que não teria mais como se encontrar, já que ele não vai tomar vacina”, afirma.
Zé Renato conta que o fim de sua história na banda se deu com uma troca de mensagens com Maurício Maestro, há cerca de duas semanas. “Fomos convidados para gravar um disco, e eu falei que toparia depois da vacina. O Maurício falou que não ia se vacinar, e aí a coisa degringolou. Senti que era a hora de fechar meu ciclo no Boca Livre, pois não dava mais para levar adiante.” O violonista integrava o grupo desde sua formação, em 1978, embora tenha se afastado entre o fim dos anos 1990 e 2006.
Apesar da questão pontual sobre a vacina contra a COVID-19, ele confirma que havia outros desgastes relacionados às diferenças políticas com Maestro. “No Boca Livre, nunca tivemos nenhum problema em relação às escolhas políticas, partidárias dos integrantes. Nunca teve nada disso em 40 anos”, diz.
Mas esse cenário mudou. “Agora é outra situação, que ultrapassa a política. Claro que é política também, mas é uma questão muito mais profunda, mais séria, que é uma ameaça aos direitos, à democracia, com apologia à ditadura militar, à tortura, ao desmatamento acontecendo numa velocidade assustadora. Eu jamais poderia imaginar que um integrante do nosso grupo pudesse se alinhar a esse tipo de pensamento”, afirma Zé Renato. O cantor e instrumentista diz ter tentado conciliar a diferença com o colega.
“Quando isso aconteceu, há dois anos, eu engoli seco, tomei um susto, propus reuniões. Tivemos várias conversas, porque isso me incomodou bastante, me tirou do clima. Até então, eu conhecia uma pessoa, que se revelou outra. Eu tentei, nesses dois anos, me adaptar, não dar importância, me concentrar na história musical da gente”, relata.
“Até gravamos um disco nesse clima (Viola de bem querer, lançado em 2019), que quase não gravei, Lourenço e David me convenceram. Pois bem, agora entramos na pandemia e estamos vendo essa tragédia acontecendo no mundo todo, e essa foi a gota d’água.” Em suas redes sociais, Zé Renato se posiciona claramente contra o presidente Jair Bolsonaro e seu governo, alvos de críticas em várias de suas postagens.
No futuro próximo, Zé Renato planeja lançar dois álbuns. Um show gravado em 2004, no Centro Cultural Carioca, com repertório dedicado a Orlando Silva, e um projeto infantil chamado Água para as crianças, que traz diversas parcerias, incluindo Lenine, Pedro Luís, Geraldo Azevedo e Marina Iris.
Lourenço Baeta também comunicou seu desligamento do Boca Livre. Em nota, ele disse: “Como não tenho perfil nas redes sociais, passo aqui para me despedir nesta hora em que também resolvi me desligar do Boca Livre por motivos pessoais. Desses mais de 40 anos em que estive no grupo guardo boas lembranças. Do tempo e da música. Foi um ciclo que se fechou. Numa boa, agora vou me dedicar a outros projetos e desejo boa sorte a quem segue”.
Em conversa com o Estado de Minas, ele também alega um desgaste na convivência, que chegou ao limite na discordância sobre a vacina. “Um grupo não é uma coisa fácil de conviver, você tem que ceder. Um desgaste, mesmo do tempo, fez com que, para mim, fechasse o ciclo.”
Ele afirma que “com esse problema da vacina, houve um desentendimento que chegou num ponto que não deu mais. São 40 anos. Não é uma quarentena, é muito tempo. Vai muito além do que é direita e esquerda. Acho que dá para conviver com quem pensa diferente, não é problema nenhum, é possível trabalhar e sempre respeitamos, mas chegou num ponto em que o tempo, a fadiga começaram a pesar, e é isso”. Lourenço diz preferir se lembrar dos bons momentos com o grupo, desejando sucesso para Maurício Maestro e David Tygel na continuidade do Boca Livre.
Procurado pela reportagem, Maurício Maestro diz que respeita a decisão dos agora ex-integrantes, mas prefere não comentá-la. “Como foi uma decisão deles, eles têm a razão deles, já deram a razão deles e não quero discutir isso. Têm o direito de fazer o que quiserem. Cada um cuida de si. Sempre quis fazer música, nunca interferi no pensamento de ninguém. Se eles tinham algum problema comigo, pergunte a eles, são decisões pessoais, que não tenho que comentar.” Legalmente, ele é dono da marca Boca Livre e planeja seguir com a banda.
“Vamos passar por um período de reorganização. Teremos o tempo necessário para seguir com a banda. Antes disso, um amigo nosso, compositor, tinha uma música, aprovada em edital, que queria gravar com a participação do Boca Livre. Como era algo já planejado, gostaria que pelo menos fizéssemos esse trabalho”, aponta.
“Mas, sem problemas. Grupo vocal é sempre difícil de substituir qualquer integrante, mas teremos nosso tempo. O Lourenço não era da formação original e o Zé Renato já tinha saído uma vez. Toda substituição tem um tempo, é um trabalho complicado. Mas eu, como arranjador do grupo, já passei por isso”, comenta Maestro.
Vídeos de Olavo
Em maio de 2020, Maurício Maestro compartilhou no Facebook conteúdos em apoio a Bolsonaro. Além do vídeo de um pronunciamento do presidente com a legenda “FechadoComBolsonaro”, o artista também publicou vídeos de Olavo de Carvalho e Allan dos Santos, apoiadores do presidente. Em julho passado, Allan dos Santos deixou o país ao ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal por disseminação de notícias falsas.
Maestro seguirá tendo a companhia do instrumentista e compositor David Tygel no Boca Livre. Em nota, ele se pronunciou sobre a saída dos colegas: “Olá pessoal, queria dizer alguma coisa depois da saída dos meus amigos do Boca. O Boca Livre é um dos meus projetos mais queridos. Essa joia que começamos em 1978 e que desde então encanta tanta gente. Por minha vez, sinto que não é hora de sair, por maiores que sejam as dificuldades nesses tempos tão sombrios. Me vem à tona uma vontade de brigar pelo grupo e ainda acho que há espaço para a viola me acompanhar.” O Estado de Minas procurou Tygel, mas não conseguiu contato com ele.