Artista plástico de formação tornado músico por paixão, Alê Fonseca, de 31 anos, considera Marco Antônio Guimarães, de 72, uma “mistura de Bach com João Gilberto”. Ele não sabia onde estava se metendo quando, a convite de uma amiga, participou de uma oficina com o compositor, arranjador, violoncelista e genial construtor de instrumentos que comandou o Uakti por 37 anos.
CIRCULAÇÃO
“A ideia era ter uma salinha para colocar os sintetizadores, dar aula para que as pessoas pudessem usar, pois essas coisas têm que circular”, diz ele, que participou como tecladista, durante dois anos, da banda que acompanhou Lô Borges na turnê do “Disco do tênis”.
A ideia de Fonseca é que o New Doors seja um “lugar das utopias”, para gravar de tudo, de rock a música clássica. “O Marco Antônio Guimarães fez música para um mundo que ele acredita melhor do que o que a gente está hoje. Então quero abrir espaços para esse mundo.”
Era 2015, e Guimarães já havia anunciado, via Facebook, o fim do grupo. Na oficina, ministrada em uma casa no Prado, antiga sede do Uakti, Fonseca ouviu um Guimarães aflito sobre o futuro. Tinha decidido vender os instrumentos. Já os havia oferecido para a UFMG e o Instituto de Arte Contemporânea Inhotim. E nada. “Ele comentou da angústia, de uma vida inteira dedicada à música e de não ter nenhuma estrutura, um imóvel para deixar para os filhos. Disse: ‘O que significa tudo o que fiz?’”
Naquele momento, havia um ano que Fonseca tinha adquirido o estúdio Máquina, no Bairro Santa Lúcia. Antiga casa da família de Haroldo Ferreti, baterista do Skank, o local havia se tornado, muitos anos antes, o estúdio da banda – local de gravação de álbuns como Maquinarama (2000) e Cosmotron (2003).
Apaixonado por sintetizadores, que começou a colecionar, pesquisar e estudar, Fonseca pensava em um estúdio como uma forma de dar vazão a todo o material e expertise que havia adquirido.
CIRCULAÇÃO
“A ideia era ter uma salinha para colocar os sintetizadores, dar aula para que as pessoas pudessem usar, pois essas coisas têm que circular”, diz ele, que participou como tecladista, durante dois anos, da banda que acompanhou Lô Borges na turnê do “Disco do tênis”.
Pois a história com Guimarães lhe calou fundo. Muitos anos antes, havia recebido do pai, Luiz Carlos Pinto Fonseca, um convite. “Vamos ver a apresentação de um grupo que constrói os instrumentos”, foi a proposta. Fonseca conta que, ao ver o Uakti pela primeira vez, sentiu um tipo de impacto do qual nunca se recuperou. “Graças a Deus.”
De volta a 2015, Fonseca virou para Guimarães e disse: “Marco, vi você falando de um imóvel. Meu irmão faleceu um tempo atrás e me deixou um apartamento de herança”. Levou-o para conhecer o imóvel no Belvedere. No encontro, também estavam seus pais, Luiz Carlos e Lúcia Palhano de Castro Souza.
“Ele olhou para o meu pai, que é uns anos mais velho, e perguntou se ele tinha estudado no Estadual Central. Meu pai disse que sim”, conta Fonseca. Pois nesta conversa inicial, Guimarães comentou com Luiz Carlos (músico amador) que se lembrava dele soprando canos no colégio. “Meu pai ficou meio sem graça, disse que sempre teve boa embocadura de trompete”, conta. Pois Guimarães se saiu com esta: “Fiquei impressionado, pois foi a primeira vez que vi alguém tirando som de cano.”
Há cinco anos, todo o acervo de instrumentos de Guimarães pertence a Fonseca. Trilobita (formada por tubos de PVC), Aqualung (em que a água corre por um tubo móvel), Chori (um instrumento que chora e ri, feito de cabaça, cordas e madeira), Torre (um módulo giratório com cordas tangidas por um arco) e tantos outros, pois são dezenas, alguns construídos antes mesmo da fundação do Uakti.
Guardado durante todo este tempo, há alguns meses o acervo ganhou uma morada à altura. Do antigo estúdio Máquina nasceu o New Doors Vintage Keys Studio. Quem conheceu o espaço não o reconhece mais.
A obra foi lenta, chegou a ser embargada por um período. Em 27 de junho do ano passado, ele finalmente estreou, e com o Skank, em live acústica – a banda realizou, meses depois, outra transmissão ao vivo no local. Também foram registradas ali apresentações do Savassi Festival, em novembro, e do violonista Juarez Moreira.
Todos eles se apresentaram na Sala Carlos Alberto Pinto Fonseca. O maestro (1933-2006), que esteve à frente do Coral UFMG (Ars Nova) por quatro décadas e foi titular da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, é tio de Fonseca e uma referência desde sempre. Ele dá nome à sala principal de gravação, que comporta até mesmo uma orquestra de câmara.
A estrela deste espaço é um Steinway D Cauda Inteira de 1914. Adquirido pela mãe de Fonseca em um leilão, passou por uma restauração completa, que o deixou novo em folha. “Este piano, feito para uma sala de concerto, fora de um espaço com este, não soa tão bem.” O projeto acústico é de Renato Cipriano, que atuou na criação de estúdios de Phil Collins, Bruce Springsteen, Ivete Sangalo, Frejat, Herbert Vianna, além do Skank e Jota Quest.
São várias salas e outros espaços dedicados à música, divididos em dois andares.O acervo de instrumentos está obviamente na Sala Marco Antônio Guimarães. O de guitarras, na Sala Skank. O espaço dedicado à gravação de voz chama-se Sala Sylvia Klein. Na parte de cima, a Sala Bob Tostes (referência à histórica e saudosa loja de discos do cantor, músico e radialista) revela uma rica e diversa coleção de vinis (de música clássica e discos raros de mineiros de décadas atrás).
De lá se chega à Sala Wendy Carlos, onde está a diversa e enorme coleção de sintetizadores de Fonseca. Como a história está ligada à fundação do estúdio, Fonseca explica que Wendy Carlos é uma compositora e musicista norte-americana. Hoje com 81 anos, foi uma das primeiras artistas de música eletrônica a utilizar sintetizadores.
A parte central desta “nave” é a Sala Conny Plank, homenagem ao histórico produtor e engenheiro de gravação alemão, que esteve por trás de registros do Kraftwerk. É ali que está a mesa de gravação em que todas as salas estão conectadas. O preciosismo é tamanho que, na entrada de cada uma delas, há uma obra de marchetaria criada para o estúdio pelo artista Daniel Herthel.
UTOPIA
A ideia de Fonseca é que o New Doors seja um “lugar das utopias”, para gravar de tudo, de rock a música clássica. “O Marco Antônio Guimarães fez música para um mundo que ele acredita melhor do que o que a gente está hoje. Então quero abrir espaços para esse mundo.”
Ele também tem consciência da responsabilidade que assumiu ao criar o estúdio e adquirir o acervo de Guimarães. O músico não conhece a sala que leva seu nome; tampouco nenhum dos ex-integrantes do Uakti esteve lá. As portas estão abertas.
Enquanto isto, Fonseca, que entende muito de sintetizadores, mas pouco de gravação (isto fica a cargo de sua equipe), formou um grupo, coordenado pelo músico Felipe José, do qual fazem parte o baterista Yuri Velasco, o multi-instrumentista Paulim Sartori e o percussionista João Paulo Drumond. Juntos, eles pretendem não só cuidar do acervo, como estudar e aprender a tocar os instrumentos. “Estamos preparando um disco em homenagem ao Marco Antônio”, diz ele.
Nenhuma história começa do nada. Pois Fonseca ouviu do próprio Guimarães a narrativa de como ele chegou à música. Estudante de piano em Belo Horizonte, foi levado por seu professor a um ensaio de orquestra, onde foi apresentado ao maestro. Foi o regente quem sugeriu a Guimarães ir para a Universidade Federal da Bahia, pois ele próprio havia estudado naquela instituição, muito à frente de seu tempo.
Guimarães chegou à UFBA nos anos 1960, onde ouviu que tinha mão boa para tocar violoncelo. Aprendeu o instrumento e ali conheceu vários músicos, como Tom Zé. Teve aulas com Walter Smetak, suíço radicado em Salvador, também violoncelista. Mas mais importante: criador de instrumentos. No retorno a BH, Guimarães agradeceu ao maestro a sugestão que mudou sua vida. O regente era Carlos Alberto Pinto Fonseca.