Jornal Estado de Minas

CINEMA

'Os sonâmbulos' mostra um retrato de cidadãos cansados demais para lutar

Com o longa-metragem Os residentes, vencedor da Mostra de Tiradentes de 2011, o diretor Tiago Mata Machado diz ter proposto “a morte da vanguarda estética”. Já em Os sonâmbulos, que estreia na TV nesta segunda-feira (1/02), quem morre, segundo ele, é a vanguarda política. 





Lançado no Festival de Brasília de 2018, o mais recente filme do cineasta mineiro envolve numa perspectiva niilista a convulsão enfrentada pelo Brasil desde as jornadas de 2013. 

“Os dois filmes são sobre o século 20 tentando falar com o século 21”, diz o diretor, que define Os sonâmbulos como a continuação de uma trilogia iniciada com Os residentes. “Hoje vemos que nenhuma revolução é centralizada, todas são horizontais, espontâneas, não verticalizadas. Não existe mais vanguarda política, apesar do vanguardismo momentâneo da direita”, afirma Mata Machado.

Os sonâmbulos será exibido pelo canal por assinatura Prime Box Brazil durante todo o mês de fevereiro. O longa acompanha os movimentos de um casal, interpretado por  Clara Choveaux e Rômulo Braga, pertencente a um grupo de resistência política contra o estado de exceção que se instalou no Brasil. 


Tudo isso de maneira mais ensaística. Não há referência exata a um contexto ou episódio real específico. No máximo, citações de elementos como a violência praticada por “uma matilha de policiais mal remunerados, movidos pelo ódio” e o poder político de “pastores e economistas que transformam Deus e dinheiro numa coisa só”. 





Segundo Tiago Mata Machado revela que os acontecimentos da realidade política brasileira atropelaram o desenvolvimento do roteiro, iniciado ainda em 2012, em parceria com Francis Vogner dos Reis, que é também um dos atores. 

“Começamos um diálogo ainda na época de Os residentes. Uma conversa por e-mail,  de onde saiu um pouco o começo do roteiro de Os sonâmbulos. A coisa vinha muito das ideias sobre o estado de exceção, do livro do Giorgio Agamben (Estado de exceção: ), e também a referência romancista de Os demônios, de Dostoiévski. Era um filme sobre complô político, por conta do estado de exceção vir se tornando regra. Começamos a rodar, mas a dificuldade foi restituir o filme para essa caixinha do mundo das ideias, pois, ao longo do processo, fomos ultrapassados o tempo todo pelo real”, afirma o cineasta.

O diretor diz que a filmagem veio “na esteira de 2013”, fortemente conectado àquela efervescência política. Em 2014, segundo ele, já havia material suficiente para a montagem. Porém, foi preciso rever o processo. “O real ia nos atropelando, veio Pixuleco, o golpe de 2016 e outros golpes sucessivos. Tinha um filme inicial mais alegórico, o grupo tinha um pouco de militante dos anos 1960, clandestino, mas não era nem de hoje nem de ontem. A ideia era um filme não linear, em um tempo histórico não linear, que não identificava época, mas isso ficou datado no processo.” O diretor acabou reescrevendo parte do roteiro e refilmando.





Em planos bem fechados, sombrios, cinzentos e claustrofóbicos, nos quais Mata Machado diz ter havido liberdade para os atores se desprenderem do roteiro, como é típico de seus filmes, os personagens transitam numa existência que ele define como “entre a vigília e o sono”. 

A ideia representa justamente a coexistência de uma revolta e um desejo de resistir às injustiças políticas e à opressão e uma completa falta de forças para tal. Para isso, a construção volta na literatura e na filosofia dos dois séculos anteriores.

“A filosofia de hoje faz o retorno ao conceito inicial, à origem da política moderna, do que foi se perdendo desde a Revolução Francesa. E aí temos o estado de exceção de origem revolucionária, que é usado pelos regimes totalitaristas ao longo do século 20, mas que sobrevive como técnica política até hoje nas democracias”, diz o diretor.





Além das já citadas referências na elaboração do filme, houve também inspiração em personagens históricos que foram referência para Dostoiévski em Os demônios. É o caso de Frederico, personagem de Francis Vogner dos Reis, uma espécie de líder do grupo de resistência, mas que assume sua própria contradição ao ter comportamentos opressores com os companheiros que lutam contra a opressão. Em uma das cenas, chega a refletir sobre o fascismo que nele habita. 

“Apostamos num niilismo ativo, nas trevas mesmo, na necropolítica, pensando nesse niilismo como nova forma de afeto político,  para além do medo e da esperança, que são os afetos políticos mais tradicionais e que nos aprisionam esses anos todos. O que mostramos é a gestação de um sujeito político que está por vir. Os personagens são isso”, afirma o cineasta.

Em sua opinião, esse é um filme de trevas que foi se tornando mais atual. “É um 'necrofilme', com um casal 'necroheterossexual', num mundo de necropolítica, tanto que a única reação que o grupo consegue esboçar é uma 'necro reação'. Uma imersão no desespero político”, comenta.   

Exibido no Festival de Brasília em data muito próxima à da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o filme segue ganhando novos entendimentos e conexões com a política do presente, segundo o diretor. “É como se tivéssemos aberto a Caixa de Pandora quando começamos a filmar. De repente, o mundo fica muito pior do que tínhamos diagnosticado.”





Tiago Mata Machado também analisa como as ideias contidas na proposta do filme se encontram com a realidade atual, posterior à finalização do trabalho. “Me interessava, no começo, que os personagens do grupo fossem de extrema esquerda, anarquistas, mas interessava também essa franja entre os extremos. Onde o anarquismo encontra o fascimo nessa pulsão de morte, esse ponto em que grupos revolucionários adotam o terror ou precisam adotar o terror”, explica. 
Clara Choveaux protagoniza a trama, que não se situa em nenhum tempo específico

RUPTURA 
Segundo ele, ao longo do desenvolvimento do filme, “esse lugar de ruptura simbólica e de violência foi sendo exercido cada vez mais pela direita”. Ele lembra que, em 2013, testemunhamos a direita “sequestrar a revolta”. 

“Foi quando os black blocs foram substituídos por famílias de verde e amarelo. Temos assistido a uma militância da direita e a uma impotência da esquerda. A direita foi para a vanguarda política, no mau sentido, desse necroliberalismo pornográfico, do governo de propaganda, mas foi.  E essa potência de ruptura, a esquerda brasileira na verdade não tem. Está sempre conciliando as coisas, enquanto a direita não se importa de falar de morte e violência e banalizar isso ao extremo”, diz.





Ainda assim, o diretor afirma enxergar uma tímida reação em oposição à majoritária melancolia mostrada no filme. “Ficamos muito tempo sem reagir. O filme fala dessa impotência da esquerda, dos gestos suicidas dos personagens, desse lugar do vazio. Mas esse salto no vazio possibilita uma nova estruturação das coisas. Tenho um otimismo de que o que vivemos agora é um último grito de birra do homem branco contra as conquistas das minorias. São as últimas forças e logo isso será datado. Os sonâmbulos também mostra esse mundo branco que definha”, diz Mata Machado.

Sobre a ausência de personagens negros na trama, ele comenta: “Fui questionado muitas vezes sobre o grupo só ter brancos, mas não é um grupo representativo. São personagens de papel, que nasceram nos romances. Não gosto de trazer muita responsabilidade para eles, dando mais às tramas e aos complôs. Tendo sempre a filmar complôs. Acho que todo filme já é um complô, porque posso inventar um mundo ali com um grupo de pessoas”

Os sonâmbulos 
.De Tiago Mata Machado, com Clara Choveaux e Rômulo Braga. 
.O longa estreia nesta segunda (1º/2), às 22h, no canal por assinatura Prime Box Brasil, e tem exibições também nos dias 3/02 (às 13h), 5/02 (às 22h), 14/02 (às 19h), 17/02 (às 13h), 19/02 (às 22h) e 26/02 (às 22h)


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