“Três defloramentos, uma mutilação genital, dois suicídios, uma curra, um assassinato, agressões lésbicas, dois exame ginecológicos, incontáveis adultérios.” Em O anjo pornográfico (1992), biografia de Nelson Rodrigues (1912-1980), Ruy Castro fez tal levantamento sobre o conteúdo de Asfalto selvagem, folhetim publicado no jornal carioca Última hora, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960.
Sessenta anos atrás, a jornada da personagem Engraçadinha foi acompanhada diariamente, “ao lado dos horóscopos e das receitas de pavê”, como descreveu Castro, sem nenhuma interferência de censura. Ainda no ano de 1960, a narrativa foi editada em livro, o primeiro dos dois romances que Nelson Rodrigues assinou com o próprio nome. O outro é O casamento, de 1966, este, sim, já no período da ditadura militar, foi censurado. As demais obras folhetinescas escritas por ele foram editadas sob os pseudônimos de Suzana Flag e Myrna.
É precisamente Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados que abre a lista de lançamentos de toda a obra em romance e folhetim (10 títulos) do autor, agora na HarperCollins Brasil. O volume chega às livrarias a partir do próximo dia 15 de fevereiro.
Ao longo deste e do próximo ano, o gigante do mercado editorial, que há cinco anos aportou no país, dá início a um trabalho de recuperação desta produção rodriguiana. Ainda que popularíssima em sua época, tornou-se, com o decorrer dos anos, menos lida do que a porção de Rodrigues dedicada aos contos, crônicas e teatro.
''É ame-o ou deixe-o. Mas os textos são tão bons que acho que as pessoas se renderão. Ou queimarão em praça pública. Só há duas hipóteses. Mas, mesmo hoje em dia, acho que as pessoas não teriam argumentos para cancelá-lo (caso estivesse vivo). Ele era muito bom de argumentação, não se rendia fácil''
Sonia Rodrigues, escritora e roteirista (filha de Nelson Rodrigues)
FABULOSO
“É o nosso primeiro autor canônico nacional”, afirma Raquel Cozer, diretora editorial da Harper. “Nelson Rodrigues é um autor fabuloso, um dos maiores escritores do Brasil no formato que seja.” Ao reler toda a obra para fazer a aquisição para a editora – “Tive meu momento obsessão por Nelson, por volta de 2000, quando li todos os livros” – a editora entendeu que ele reserva “um potencial de cancelamento muito grande”.“Ele retrata o ‘homem de bem’ brasileiro. Ironiza muito o falso moralismo da sociedade brasileira. Seus personagens principais defendem os bons costumes, a família, e o tempo todo ele mostra como são pervertidos. Acho muito atual”, afirma.
A questão de um possível cancelamento foi levada em conta no trabalho para a nova edição, que, coincidentemente, de acordo com Cozer, foi realizada por uma equipe exclusivamente feminina. Todos os volumes sairão com dois textos de apoio, não só de autoras mulheres.
Mas o de Asfalto selvagem traz textos da atriz Maria Ribeiro e da escritora e professora Adriana Armony, estudiosa de Nelson Rodrigues. A edição ainda terá notas sobre quem foram as personagens reais que circulam pela história, figuras do mundo literário e jornalístico da época, como José Ramos Tinhorão e Otto Lara Resende.
Dividido em duas partes, Asfalto selvagem acompanha, na primeira, a juventude de Engraçadinha e, na segunda, sua vida como mulher madura. Do Espírito Santo, a personagem se mudou para o Rio de Janeiro, após acontecimentos trágicos.
''Era um ironista. Se não conseguirmos ler a obra dele pela ironia, sempre será uma leitura superficial''
Elen de Medeiros, professora da Faculdade de Letras da UFMG
REMORSO
Quando jovem, apaixonou-se por seu primo Silvio. A tragédia veio quando ela, já grávida do rapaz, descobre que, na verdade, eles são irmãos. O pai de Engraçadinha, consumido pelo remorso, se mata. Vinte anos mais tarde, ela vive na Zona Norte carioca, como uma mulher casada e apegada à fé para controlar seus instintos. Mas o passado retorna.“Acho que o folhetim dele é muito importante e fácil para o público, pois tem emoção, muitas viradas. O folhetim não tem vergonha de dizer a que veio”, afirma a escritora e roteirista Sonia Rodrigues, filha de Nelson.
Ela também é organizadora de Nelson Rodrigues por ele mesmo, criado a partir de entrevistas que o escritor concedeu. Lançado em 2012 pela Nova Fronteira, que continua como a casa dos textos teatrais, contos e crônicas do autor, o volume de entrevistas também entrou no pacote da Harper, e será relançado pela editora.
Sonia vê um potencial de grande público para a obra ficcional do pai, pois “o folhetim dele tem uma estrutura muito rica; você não consegue desgrudar”. Mas, ainda hoje, ela diz, Nelson Rodrigues desperta o mesmo tipo de reação que provocou em sua época.
“É ame-o ou deixe-o. Mas os textos são tão bons que acho que as pessoas se renderão. Ou queimarão em praça pública. Só há duas hipóteses. Mas, mesmo hoje em dia, acho que as pessoas não teriam argumentos para cancelá-lo (caso estivesse vivo). Ele era muito bom de argumentação, não se rendia fácil.”
''Ele retrata o 'homem de bem' brasileiro. Ironiza muito o falso moralismo da sociedade brasileira. Seus personagens principais defendem os bons costumes, a família, e o tempo todo ele mostra como são pervertidos. Acho muito atual''
Raquel Cozer, diretora editorial da HarperCollins Brasil
DIÁLOGOS
Professora da Faculdade de Letras da UFMG, Elen de Medeiros estuda há quase 20 anos a obra teatral de Nelson Rodrigues, objeto de seu mestrado e doutorado. “Alguns de seus romances são muito embasados na estrutura dialógica, coisa que o teatro faz muito bem. Então, me parece que nisso ele consegue amalgamar entre os dois gêneros explorados, alimentando suas narrativas mais longas a partir do uso da estrutura dos diálogos tão bem construídos. Afora isso, claro, os temas tratados são muito próximos, aspectos de um cotidiano carioca, a pequena família burguesa da Zona Norte carioca, em crise e fracassada, a falsa moral que rege a estrutura social.”Para a acadêmica, a obra de Nelson Rodrigues não permite uma “leitura apressada e superficial”. “Era um ironista. Se não conseguirmos ler a obra dele pela ironia, sempre será uma leitura superficial”, diz a professora, citando a professora e pesquisadora Flora Süssekind. “Há sempre um fundo falso nas frases de Nelson Rodrigues.”
Asfalto selvagem teve milhares de leitores. Ao longo das décadas, ganhou ainda mais adeptos, graças às suas adaptações. Primeiramente no cinema – Engraçadinha (1981), longa de Haroldo Marinho Barbosa, com Lucélia Santos no papel-título, em período bastante prolífico como protagonista de adaptações de obras de Nelson Rodrigues.
ADAPTAÇÃO
E houve um momento posterior, com a minissérie Engraçadinha: Seus amores e seus pecados (1995; TV Globo). Produção de muita repercussão, reprisada volta e meia (mais recentemente em 2020, pelo canal Viva), Engraçadinha Trazia Alessandra Negrini (despontando na TV) como a personagem adolescente, e Cláudia Raia na fase adulta. O texto foi adaptado por Leopoldo Serran.Na época, o cineasta e roteirista gaúcho Carlos Gerbase vinha de uma bem-sucedida incursão televisiva, integrou a equipe que adaptou Memorial de Maria Moura (1994), da obra de Rachel de Queiroz. Diretor do núcleo responsável por Engraçadinha, Carlos Manga convidou Gerbase para uma revisão do roteiro de Serran. Foi um trabalho de reescrita, conta ele.
“Disse ao Manga que conhecia razoavelmente a obra, mas não era expert. Além do mais, sou de Porto Alegre, ele é totalmente carioca. O Manga me disse que, como o havia conhecido, não me deixaria fazer nenhuma bobagem.”
No processo de adaptação, Gerbase deparou-se com detalhes que desconhecia. “Eu fazia umas perguntas meio bobas. Lendo o romance, encontrei falas como ‘Tu me queres?’. Isto aí é gaúcho. Aí o Manga me explicou que no Méier, em Bangu, falava-se tu.”
Houve alguns desafios no processo. “Se tu ler com cuidado, na cena de enterro do pai, o que o Nelson Rodrigues descreve é a Engraçadinha se masturbando na lápide. Isto fica subentendido. Mas eu teria que encontrar uma imagem para aquilo. A literatura do Nelson traz um certo desafio”, afirma Gerbase. Reescrita, a cena mostra a personagem indo embora do enterro rebolando um pouco, enquanto alguém observa: “Essa menina vale um crime sexual”.
Para Gerbase, um cancelamento do autor no século 21 é algo remoto. “Acredito que na ficção não. Mesmo que nos tempos atuais seja um pouco complicado, espero que as pessoas separem o que é representação do mundo e opinião do autor. A obra de Nelson Rodrigues é consagrada, faz parte do cânone, teriam que encontrar um negócio violentíssimo para isto. Acho que está razoavelmente seguro.”
Os títulos da coleção
Confira os lançamentos previstos para 2021 e 2022
» A mentira
» A mulher que amou demais
» Escravas do amor
» Meu destino é pecar
» Minha vida
» Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo
» Nelson Rodrigues por ele mesmo (Organizado por Sonia Rodrigues)
» Núpcias de fogo
» O casamento
» O homem proibido
ASFALTO SELVAGEM: ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS
• De Nelson Rodrigues. HarperCollins, 512 páginas. R$ 59,90 e R$ 39,90 (e-book). O volume está em pré-venda e chega às livrarias a partir de 15 de fevereiro.