Não há respostas prontas em Açucena. Grande vencedor da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o longa baiano, estreia do diretor Isaac Donato nesse formato, está na fronteira entre o documentário e a ficção.
Objetivamente, o filme acompanha os preparativos do aniversário de uma senhora de 67 anos que vive na Região Metropolitana de Salvador. Só que a celebração, anualmente, comemora os 7 anos de idade da mesma personagem.
Para a festa, o grupo de amigos e parentes que a cerca tem que fazer escolhas. Entre elas, quais as bonecas de sua coleção (de mais de 100) participarão da festa. E isso se repete ano após ano. “É um documentário que cobre um universo que inventa, sem ser fictício”, afirma Donato. “Dentro desse universo, existe uma realidade que corresponde ao desejo de ser compreendido pelo outro. A invenção desse tempo é justamente para manter a existência desse grupo.”
O cineasta chegou à dona Guiomar, a personagem central do filme, por meio de uma pesquisa sobre mulheres e patrimônio imaterial. Rodado durante duas semanas de outubro de 2019, o filme foi finalizado remotamente durante a pandemia.
A pergunta que o espectador se faz o tempo todo é: quem é Açucena? A resposta, diz Donato, só pode ser encontrada depois dos créditos finais do longa. “Do contrário, poderá haver interpretações precipitadas.”
Se em 2020 a Mostra de Tiradentes teve uma edição normal, já que realizada pouco antes do início da pandemia, neste ano o evento, que abre o calendário anual de festivais nacionais, foi exclusivamente digital. Mas manteve no on-line o modelo do presencial, com sua programação dividida entre mostras temáticas, oficinas e eventos paralelos. Cento e catorze filmes brasileiros foram exibidos durante nove dias. O evento registrou 550 mil acessos em seu site.
MINEIROS Além de Açucena, a Mostra de Tiradentes premiou quatro produções. Duas são mineiras, o longa Nh?? yãg m? yõg hãm: Essa Terra é nossa!, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, e o curta 4 bilhões de infinitos, de Marco Antônio Pereira. Todos os diretores já haviam sido premiados em edições anteriores da mostra.
Sueli e Isael Maxakali receberam nesta edição o Prêmio Carlos Reichenbach da Mostra Olhos Livres, mesmo prêmio que haviam levado no ano passado pelo filme Yãmiyhex? – As mulheres-espírito. O novo documentário trata de uma questão urgente para todos os povos indígenas: a terra. “Meu povo perdeu seu território, mas em nenhum momento meu povo perdeu sua língua e sua tradição”, afirmou Sueli, em mensagem de áudio.
Tanto ela quanto Isael tiveram sua participação restrita no processo de montagem do documentário, finalizado durante a pandemia. Os dois também só o assistiram pelo celular, já que o acesso à internet é difícil onde vivem – no município de Ladainha, no Vale do Mucuri.
Até junho de 2020, o casal e mais de 100 famílias maxakali viveram em terra adquirida em 2007 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). “Só que não havia curso d’água e tinha uma demanda grande por uma terra com água”, explica o antropólogo Roberto Romero. Os maxakali cresceram neste período e, como não vivem em grandes aldeias, espalharam-se em pequenos grupos familiares.
“Durante a pandemia a situação foi agravada, inclusive com o avanço de missionários evangélicos. Eles saíram da reserva de onde viviam e mudaram-se, provisoriamente, para um local arrendado pela prefeitura de Ladainha. No início deste ano, quando a gestão (municipal) mudou, o arrendamento não continuou. Neste momento, estão à procura de outra terra, para onde pretendem se mudar com as 100 famílias e realizar o sonho de criar uma aldeia-escola-floresta, que seria um espaço de fortalecimento da cultura e de preservação ambiental.”
FILME-ESTRADA O documentário recupera a luta histórica pela terra dos maxakali, povo que habita o Nordeste de Minas Gerais. “Eles têm alguma terra demarcada, mas esta demarcação nunca seguiu a região que eles reconhecem como território tradicional”.
As soluções, de acordo com Romero, sempre foram foi paliativas. O documentário foi pensado como um filme de estrada, em que Sueli, Isael e outros maxakali passam por vários espaços onde viveram, mostrando memórias vivas e afetivas. “Seguimos um pouco o mapa do território tradicional dos maxakali”, explica ele.
Para o antropólogo, a chegada de filmes realizados por indígenas em festivais do porte de Tiradentes, Gramado e Brasília é uma conquista bastante significativa. “Espero que essa produção comece a ser vista como merece, pois é imprescindível que alcance o máximo de pessoas possível. Mas os desafios são de toda ordem, pois é tudo feito artesanalmente.” Atualmente, eles estão negociando um licenciamento dos filmes para uma plataforma de streaming.
Diretor premiado cresceu
sem conhecer cinema
A segunda produção mineira premiada em Tiradentes é o curta 4 bilhões de infinitos, vencedor do Prêmio Canal Brasil. É uma narrativa sobre sonhos e impossibilidades, que dialoga com a própria história de seu diretor, Marco Antônio Pereira.
Mineiro de Cordisburgo, de 30 anos, ele entrou pela primeira vez em uma sala de cinema em 2007, quando assistiu a uma mostra de videoarte no Cine Humberto Mauro. Então estudante de jornalismo em Belo Horizonte, Pereira, impactado pela exibição, decidiu que faria cinema. Dez anos mais tarde, depois de ter vivido em outros lugares, retornou a Cordisburgo, onde começou a fazer curtas.
4 bilhões de infinitos acompanha os irmãos Adalberto e Ana Júlia, que, sem energia elétrica em casa, criam seu próprio cinema, a despeito da ausência de luz. A ideia partiu de um encontro de Pereira com um rapaz que pedia para uma vizinha dinheiro emprestado para pagar a conta de luz. “Comecei a reparar que Cordisburgo estava com várias casas com energia cortada”, ele conta.
O curta teve première em setembro, no Festival de Cinema de Gramado. Depois,participou de outros eventos do gênero, no mesmo período em que houve o apagão no Amapá. As crianças que estão no filme de Pereira são vizinhos, e o cenário é todo ao redor de sua casa. Seus filmes são feitos com atores não profissionais.
O diretor diz que faz filmes “para impactar a vida das pessoas”, principalmente as “mais simples”. E acredita que seus curtas tenham apelo de público, pois já levou cinco Kikitos em Gramado e também um troféu do júri popular em Tiradentes (pelo curta A retirada para um coração bruto, de 2018).
Planeja lançar um longa, Era uma vez em Cordisburgo, com a reunião de cinco curtas. 4 bilhões de infinitos foi o quarto. O último da série, para o qual ele tenta encontrar patrocínio, se chamará A última vez que eu vi Deus chorar.
TROFÉU BARROCO
» Longas
.Mostra Aurora (júri oficial):
Açucena (BA), de Isaac Donato
. Prêmio Carlos Reichenbach da Mostra Olhos Livres (júri jovem):
Nuhu?? yãg mu? yõg hãm: essa terra é nossa! (MG), de Isael Maxakali,
Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero
.Prêmio Helena Ignez para destaque feminino:
Ana Johann, diretora e roteirista de A mesma parte de um homem (PR)
» Curtas
. Mostra Foco (júri oficial): Abjetas 288 (SE), de Júlia da Costa e Renata Mourão
. Prêmio Canal Brasil: 4 bilhões de infinitos (MG), de Marco Antônio Pereira