A atriz Maria Fernanda Cândido, de 46 anos, está representando o Brasil entre os artistas elegíveis ao Bafta, prêmio equivalente ao Oscar no Reino Unido. Seu nome está sendo considerado por seu papel no filme italiano O Traidor, baseado na história real do mafioso Tommaso Buscetta, que entregou os comparsas para a Justiça e se apaixonou por uma brasileira.
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Uai, Indica Essa: 5 streamings alternativos que você deveria conhecerOs eleitos reconta, à moda Disney, a ação dos EUA na corrida espacialOtávio Müller assume erros e ri de si mesmo em 'Questão de falha'O papel de par romântico do mafioso é um dos muitos trabalhos internacionais recentes da atriz, que gravou o filme italiano Bastardi a Mano Armata (bastardos a mão armada, em italiano) e atualmente está participando de um projeto em Londres sob protocolos rígidos de segurança para proteção contra o coronavírus.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela diz que fica triste de ver o "desmantelamento do setor cultural" no Brasil, onde ela continua gravando filmes, como Vermelho Monet e Paixão Segundo GH (ainda não lançados), e onde está no ar com a reprise da novela A Força do Querer, na Globo.
"A cultura para esse governo, claramente — isso é dito abertamente — não é uma prioridade. E além de não ser uma prioridade ela é de uma certa forma desvalorizada", afirma.
A atriz também diz que a onda ultraconservadora que o mundo vive é resultado do medo e da não aceitação das diferenças. "Talvez a gente precise expandir um pouco a nossa capacidade de aceitar as diferenças, e entender que isso não é algo que apenas exige um esforço, mas que é algo bonito, que é algo que traz muita riqueza", diz ela.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - O tema da máfia é muito recorrente no cinema. Por que ele faz tanto sucesso entre o público?
Maria Fernanda Cândido - Existe uma questão da máfia como uma sociedade paralela, um tipo de poder paralelo, com muitos códigos, existe todo um código de honra, uma fidelidade... Mas, ao mesmo tempo, é algo paralelo ao poder, ao status quo, e de certa maneira é muito intrigante. Existe uma grande atração por parte das pessoas. Porém o filme do (diretor Marco) Bellochio não romantiza a máfia, é um retrato muito cru dessa situação e da vida dessas personagens que vivem dentro desse sistema paralelo.
A grande questão que o filme traz é o dilema dessa personagem principal, que é o Don Masino, o Tomaso Buschetta, entre ser parte deste grupo que o acolheu durante a vida toda — desde a adolescência ele fez parte da máfia — ou não. Ele diz que a máfia não é mais a máfia, porque a máfia antigamente tinha um código de honra.
BBC News Brasil - Sua personagem é uma brasileira, uma mulher normal que se apaixona por um criminoso. O que ela viu nele para fazer ela se apaixonar e viver com ele?
Maria Fernanda Cândido - A gente não consegue compreender como uma mulher como Maria Cristina, tão inteligente, tão culta, pertencente a uma família de advogados — uma família que trabalhava com a lei — como uma mulher que vem deste lugar se apaixona por um criminoso, um homem do mundo do crime. É uma pergunta de fato que não tem resposta e eu acho que essas perguntas são as mais atraentes para os atores, para as atrizes, porque é com esse material absolutamente controverso, incongruente, que a gente gosta de trabalhar.
E ela foi muito apaixonada por esse homem e ficou com ele até o último dia da vida dele. Ela ainda está vida. E ela não só cuidou dos filhos deles, que tiveram juntos, como ela cuidou dos enteados, os filhos da primeira esposa, da segunda esposa.
BBC News Brasil - Como que foi interpretar uma personagem baseada em uma pessoa real?
Maria Fernanda Cândido - Foi bem difícil, tínhamos pouquíssimas informações, algumas fotografias... Meu sonho na época era encontrar a Maria Cristina ou pelo menos conversar com ela por telefone, ter algum contato. O que foi absolutamente impossível, porque ela vive sob proteção judicial, então ninguém sabe o paradeiro dela.
BBC News Brasil - O filme tem algumas cenas mais fortes, cenas de tortura da Maria Cristina em um avião. Como você lida com esses momentos mais brutos?
Maria Fernanda Cândido - Eu nunca tinha feito uma cena assim, foi a primeira vez que eu participei de uma cena com esse tipo de ação. Era muito complexo porque eu fiquei presa por cabos de aço, cintos de segurança, era seguro. Mas (depois) de ter passado o dia todo presa e pendurada, no dia seguinte eu não conseguia andar, fiquei toda com marcas, fiquei toda roxa. É muito físico. E não foi fácil, porque eu tinha que estar pendurada pelos cabelos. Depois eu não conseguia tossir, não conseguia dar risada porque as costelas ficaram superdoloridas. Enfim, ossos do ofício.
BBC News Brasil - O setor cultural foi um setor que sofreu muito com a pandemia no Brasil, ele foi especialmente afetado. Mas mesmo antes da pandemia já tinha artistas reclamando do fato de o governo usar canais oficiais para criticar trabalhos e da diminuição do financiamento para o cinema brasileiro. Como você vê essa crise na cultura e o que você acha que precisa ser feito?
Maria Fernanda Cândido - A gente não pode esquecer que antes da pandemia a gente já estava enfrentando grandes dificuldades porque hoje nós temos um governo que não prioriza a cultura. A cultura para esse governo, claramente — isso é dito abertamente — não é uma prioridade. E além de não ser uma prioridade ela é de uma certa forma desvalorizada. É um problema enorme porque também vai provocando um certo desmantelamento do setor. A gente está há dois anos vivendo isso, e agora além de tudo isso tem a pandemia. E de certa maneira, se a gente pensar num próximo governo, que tenha uma relação diferente com a cultura, vai precisar de um tempo para uma reorganização, para uma reconstrução.
Não é a primeira vez que o país atravessa esse tipo de problema, a cultura já sofreu antes e ela se reergueu, ela se refez. Estamos aqui e não desistiremos, sobreviveremos. Mas é muito triste ter que passar por tudo isso e depois gastar tempo e energia reconstruindo algo que no Brasil é tão potente, é uma marca tão forte do nosso povo. Somos um povo com muita potência criativa, a nossa cultura é muito exuberante.
BBC News Brasil - Você citou as ações do governo na cultura, mas ações em outras áreas repercutiram muito, a questão das queimadas na Amazônia, o próprio combate à pandemia tem sido polêmico. Isso mudou a imagem do Brasil? Como você tem sentido a repercussão dessas notícias?
Maria Fernanda Cândido - As pessoas sabem aquilo que estamos atravessando, elas sabem as características desse governo, isso é um fato. Mas eu percebo que o Brasil tem uma imagem bastante positiva na Europa, nos países onde eu tenho andado. Muito mais positiva do que a imagem que nós mesmos fazemos de nós. O Brasil ainda precisa caminhar muito no sentido de se reconhecer, reconhecer as suas qualidades, a sua própria força, aquilo que nós temos de muito bom. E também reconhecer os pontos em que nós precisamos trabalhar, desenvolver e melhorar. É uma questão de autoconhecimento.
BBC News Brasil - Agora a Globo está reprisando a novela A Força do Querer, da qual você faz parte. Ela trouxe o tema da transexualidade como discussão. Entre 2017 e agora, como você sentiu o impacto da sua personagem, da novela e da discussão que ela trouxe?
Maria Fernanda Cândido - Não mudou nada ainda. É uma discussão ainda para a sociedade, não é um tema resolvido. Eu acho que ainda tem um impacto, ainda é relevante. Essa discussão está em pauta dentro da sociedade... Homofobia, misoginia, racismo, enfim, todas essas questões são muito atuais e já vêm sendo tratados ao longo de muitas décadas. Se a gente está aqui hoje conversando sobre tudo isso, (é) graças a todos nós que já começamos essa luta lá atrás.
É uma corrida de bastão, que vem sendo passado de mão em mão há muito tempo. Talvez a gente precise expandir um pouco a nossa capacidade de aceitar as diferenças, e entender que isso não é algo que apenas exige um esforço, mas que é algo bonito, que é algo que traz muita riqueza, que enriquece as nossas vidas. Estamos aqui, hoje, nessa onda ultraconservadora que a gente está vivendo. A gente demora para conseguir de fato as grandes transformações.
BBC News Brasil - Você falou de onda ultraconservadora. Como você tem sentido o impacto disso?
Maria Fernanda Cândido - As pessoas quando votam escolhem as diretrizes que elas querem, que elas imaginam que seria adequadas para o seu país. Então se hoje você analisar esse painel dos dirigentes de muitos países a gente tem um grande número de governantes que tem esses princípios muito mais conservadores, de não aceitação de diferenças. Eu me sinto triste, porque eu acho que é um reflexo de muito medo.
Eu vejo que essa maneira muito conservadora de viver traduz para mim um grande medo. As pessoas têm muito medo, e esse medo faz elas reagirem de forma conservadora como uma ilusória forma de proteção. Como se elas entendessem que isso é uma forma de proteção. E na verdade não é. E se a gente parar para analisar, o nosso sistema capitalista é muito baseado numa lógica fálica, "eu tenho, você não tem", "eu tenho, portanto eu sou melhor que você", sempre numa atitude comparativa que vai sempre valorizar quem tem. Colocando quem tem como sendo melhor, sendo bom. Esse critério não propicia uma compreensão das diferenças entre as pessoas. Porque as diferenças não deveriam servir como critério de valoração, elas são apenas diferenças.
BBC News Brasil - Qual o impacto real nessa mentalidade que você acha que o cinema, e as novelas, a televisão, têm?
Maria Fernanda Cândido - Eu gostaria de pensar que a gente pudesse ter um grande impacto, mas eu não tenho certeza disso. Eu acho que a arte é um grande mecanismo, é uma grande maneira de discutirmos e de pensarmos nós mesmos, e de fazer esse espelho com a realidade. O artista deve ser um reflexo do seu tempo, do povo, do lugar que ele habita, desse espírito do tempo. Mas a arte não se produz somente dessa maneira, a arte também está inserida dentro de um mercado.
BBC News Brasil - Falando de paralelos entre a vida real e da arte, e voltando ao filme O Traidor, um dos personagens relacionados ao Don Masino é Giovanni Falcone, o juiz que trabalhou contra a máfia na Itália antes da operação Mãos Limpas (que visava desmantelar o crime organizado). No auge da Lava Jato, surgiram comparações entre Falcone e Sergio Moro. Na época, você até chegou a apoiar as dez medidas contra a corrupção (principal bandeira de Moro). Hoje em dia como você enxerga essa comparação entre esses dois personagens?
Maria Fernanda Cândido - Olha, eu sei que o juiz Sergio Moro usou a operação Mãos Limpas da Itália um pouco como base, como referência. Então isso é um fato. Eu na época apoiei as dez medidas, antes do golpe, do impeachment da Dilma — era 2014, 2015. Tinha uns 70% daquelas medidas que eram muito boas e todos estavam muito de acordo que era bom. E tinha 20% que eram questionáveis, que deveriam ser discutidas pelo Congresso.
Mas era uma forma assim ingênua de achar que também alguma coisa seria feita. E no fundo nada aconteceu, o Congresso desvirtuou todas as medidas, foi uma coisa horrível, muito decepcionante. E na sequência os fatos foram acontecendo, houve o impeachment da Dilma, esse envolvimento do próprio Sérgio Moro, o fato de ter entrado para esse governo atual. Foi uma experiência um pouco decepcionante, que me desiludiu, até mesmo como cidadã.
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