Com a pandemia da COVID-19 impossibilitando o funcionamento normal dos teatros, espetáculos foram reinventados e passaram a ser realizados em espaços alternativos (muitas vezes as casas dos artistas) e transmitidos por meio de plataformas digitais. Para o dramaturgo e diretor Júlio Vianna, essa nova realidade se mostrou uma oportunidade para experimentação.
Na peça Sharing: The night, que estreia neste sábado (6/2), às 21h, via YouTube, ele incorporou as medidas de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus. Ou seja, os atores encenam usando máscaras e as cenas respeitam tanto o distanciamento social quanto a política de não aglomeração.
''Ainda que eu perca metade da expressão do rosto dos atores, é um acessório indispensável atualmente. Com ela, a expressividade no olhar começa a ter mais valor. E hoje as pessoas já estão acostumadas a lidar com a máscara. Tornou-se algo natural'', afirma. ''Já o distanciamento social está inserido em uma lógica dramatúrgica. Os personagens não se bicam, portanto, não se tocam'', acrescenta.
A montagem marca a formatura de uma das turmas do curso técnico de teatro do Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart) da Fundação Clóvis Salgado (FCS).
''O convite surgiu no final de 2019. Como as turmas de teatro precisam apresentar dois espetáculos no ano de formatura, eles me escolheram para dirigir o primeiro'', conta Júlio Vianna. ''A partir do convite, comecei a pensar um espetáculo que fosse encenado em um espaço não convencional, cujas características também ajudassem a construir a história.''
LABORATÓRIO O processo de pesquisa e laboratório com os atores e atrizes começou no início de 2020, mas foi interrompido devido à pandemia. No primeiro momento, eles enfrentaram uma série de incertezas diante da suspensão das aulas, então transferidas para a internet.
Diante da demora em retomar os ensaios presenciais, o diretor e professor encontrou uma alternativa e apresentou uma proposta para a FCS. ''Elaborei um projeto muito detalhado que levava em conta a segurança como potência artística. Para que isso acontecesse, eu precisava garantir a segurança dos alunos e da equipe técnica. Além dos protocolos comuns que a maioria das pessoas já segue, eu garanti, por exemplo, que eles tivessem como ir aos ensaios sem ter que pegar transporte público. Então, uma van os buscava e levava de volta, cada um deles'', conta.
No entanto, Sharing: The night não é uma peça sobre a pandemia, tampouco se passa em 2020. A montagem, encenada no Palacete Dantas, localizado na Praça da Liberdade, conta a história de um grupo de pessoas que se hospeda em um grande casarão isolado. Ao longo de uma noite, acontecimentos estranhos e misteriosos abalam a convivência do grupo.
Para criar a atmosfera de tensão, o mistério também foi utilizado como método de trabalho. Durante os ensaios, era comum que Júlio Vianna revelasse detalhes do enredo apenas momentos antes de os atores entrarem em cena.
''Ao soltar aos poucos a narrativa dramatúrgica, resolvi colocar o elenco nesse estado de tensão, de não entender completamente todas as dinâmicas e propostas. Aos poucos, os artistas foram descobrindo quem eles interpretariam. Dessa forma, todos os personagens são passíveis de ser culpados, inocentes ou vítimas. Isso cria uma ambivalência dentro dos atores que me interessa trabalhar'', comenta.
DESCONFORTO A cena final, que põe um ponto final no mistério da trama, só foi revelada para os atores dois dias antes da estreia. ''Isso os coloca em estado de desconforto, ao mesmo tempo em que os instiga a ir fundo nas informações que eles já têm. É uma forma de tornar o jogo teatral mais interessante'', diz.
Como a montagem é encenada em um ambiente cênico incomum, a equipe técnica tomou uma série de cuidados para construir conexões entre o espaço físico e o roteiro. Tanto a direção de arte – assinada por Tereza Bruzzi, Ed Andrade e Cristiano Cezarino – quanto o responsável pela iluminação, Cleverson Eduardo, estudaram o edifício em termos históricos, arquitetônicos e socioeconômicos.
Dessa forma, a pesquisa e a criação foram desenvolvidas a partir da experimentação e construção de cenas em diálogo com o espaço físico e arquitetônico. Esse é um processo denominado ''dramaturgia do espaço''.
''Essa é uma linha de pesquisa na área teatral que, no Brasil, foi muito difundida pela companhia Teatro da Vertigem. É pensar o espetáculo a partir da relação com o espaço arquitetônico. Ou seja, todas as ações que acontecem em cena precisam levar em conta onde isso acontece'', explica o dramaturgo.
O que também não deixou de ser levado em conta é o fato de o espetáculo ser transmitido on-line. O cinegrafista Leandro Lopes será o olho do público. Com ele, a câmera irá transitar pelos cômodos do Palacete Dantas para mostrar os diferentes ângulos da história.
''Isso é uma coisa inteiramente inovadora. Será uma transmissão itinerante em um palácio enorme, com pé-direito altíssimo, percorrendo 12 cômodos. Então, é preciso levar em conta os termos tecnológicos dessa empreitada e os riscos que ela apresenta'', afirma o diretor.
Quanto às referências que o ajudaram a ambientar a história, ele cita filmes como Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, e Orgulho e preconceito (2005), de Joe Wright. Já o nome da peça faz referência à música Sharing the night together, da banda norte-americana Dr. Hook.