Na obra – e no coração – de Zélia Duncan há um espaço especial para os compositores da cena paulistana. Esse encantamento não vem de hoje. Vem de longe. Vem de décadas. Primeiro, foi Itamar Assumpção, um dos expoentes da Vanguarda Paulista, que ela canta desde 1985. Na mesma época, conheceu a música de Luiz Tatit. Na década de 1990, foi a vez de Alzira E, integrante da família de artistas Espíndola, da qual faz parte Tetê, sua irmã. Alzira é nascida em Mato Grosso do Sul, mas foi em São Paulo que desenvolveu sua carreira.
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Sem premeditar, Zélia Duncan fechou uma trilogia. O show do novo álbum, previamente gravado, estreou na quinta-feira (4/2), em uma sala da plataforma Zoom. “É muito doido, porque a gente sempre trabalha em silêncio, horas e horas a fio, para que, na estreia, durante uma hora e meia, as pessoas vejam. Agora elas até veem, mas a gente não sente”, lamenta a cantora e compositora, de 56 anos, sobre a sensação de se apresentar remotamente, por imposição da pandemia.
“Como o que os olhos não veem o coração não sente, o cérebro tem de ficar mandando para o coração: ‘Olha, está cheio de gente lá, as pessoas estão gostando’. E você vai dando um outro jeito de levar adiante”, comenta.
A conexão de Zélia com São Paulo está mais estreita, pois ela vai se mudar do Rio de Janeiro para a capital paulista. A pandemia fez com que a cantora e a namorada, a designer e artista plástica Flávia Pedras Soares, decidissem morar juntas em Sampa, onde Flávia vive. “Não é fácil, tem minha mãe, meus irmãos, meus amigos, minha casa no Rio. Mas estou animada com a nova fase”, revela.
DISTANCIAMENTO
Primeiro single de Minha voz fica, a canção Beijos longos (Alzira E, Jerry E e Arruda) está originalmente em um álbum de Alzira de 2010, o Pedindo a palavra, mas ganha ressignificação nestes tempos de distanciamento social. Há poesia e melancolia ali.
“Eu tenho saudade daqueles beijos longos”, canta Zélia, como num lamento, acompanhada pelo violão delicado de Pedro Franco. “Estamos num tempo em que as músicas que dizem coisas existenciais, quando você bota na boca, mudam de significado. Quando digo ‘tenho saudade daqueles beijos longos’, várias pessoas choram ao ouvir, porque é uma coisa tão literal. O beijo longo não é só o beijo que você dá no seu amor. Que saudade de dar um monte de beijos na minha mãe. Na verdade, é a saudade da vida da gente, que mudou de repente e nos privou de um monte de coisas.”
Outras canções do álbum inevitavelmente podem ganhar novos sentidos sob o impacto dos dias atuais. Afinal, a obra de Alzira fala ao coração em qualquer momento e para qualquer geração. Minha voz fica reúne 12 faixas. Quatro são inéditas: Solidão, de Alzira e Lucina (antiga parceira de Zélia); a feminista O que me levanta a saia, de Alzira e Alice Ruiz; Sonhei, dela e Arruda; e Fica, parceria de Alzira e Zélia, que assina a letra. O título do disco veio dela.
“Essa música já existia faz um tempo. De repente, cai como luva de novo”, afirma a cantora. “Nunca imaginei que ela viria à tona nos 40 anos (de carreira). Achei que ficou muito emocionante no disco.” À nova safra juntam-se canções afetivas para Zélia, que ganham releituras dela e de Pedro: as ótimas Cheguei (Alzira E/Tiganá) e Ouvindo Lou Reed (Alzira E/Arruda). A cantora reencontra Itamar Assumpção (1949-2003) em duas parcerias dele com Alzira: O que é que eu fiz de mal e Mesmo que mal eu diga.
É um repertório que a cantora não só admira, como domina. Ela já havia gravado outras canções de Alzira em diferentes projetos, além de ter se envolvido em dois álbuns dessa artista por meio de seu selo, o Duncan Discos: produziu Para elas, de Alzira e Alice Ruiz, e lançou Alzira E e Arruda.
O TRIO DE SAMPA
Alzira E
Aos 63 anos, a compositora nascida no Mato Grosso do Sul e radicada em São Paulo desenvolve trabalho fortemente autoral, marcado pela criatividade. Tem parcerias com Itamar Assumpção, Alice Ruiz e Dante Ozzeti, entre outros.
Itamar Assumpção
Destaque da Vanguarda Paulista, que lançou vários talentos nos anos 1970/1980, era um dos artistas mais criativos e ousados de sua geração, ao lado de Arrigo Barnabé. Expoente da contracultura, morreu de câncer em 2003, aos 53 anos.
Luiz Tatit
Aos 69 anos, o músico, linguista e professor universitário é um dos fundadores do Grupo Rumo, destaque da Vanguarda Paulista. Sua MPB experimental explora com maestria a palavra falada, a ponto de Luiz ser considerado autor de “anticanções”.
A aventureira e o improvisador
Em Minha voz fica, os diálogos musicais entre Zélia Duncan e Alzira E se consolidam, mas com a presença de um novo elemento que merece todas as atenções: o violão de Pedro Franco. Gaúcho de 29 anos, Pedro é um grande talento apresentado neste disco, que divide o protagonismo com a cantora na comunhão de voz e violão.
O modo de tocar de Pedro parece beber na fonte de Hamilton de Holanda e Yamandu Costa. “Ele tem um espírito muito improvisador. Sou aventureira, então acho gostoso esse tipo de perigo. Você sabe que o músico vai e que ele vai voltar para te buscar”, comenta Zélia.
“Quando o improviso vem, você não sabe exatamente o que vai acontecer. No nosso caso, a gente não sabia nem exatamente onde voltava. Por exemplo, no show de estreia, o Pedro não tinha nenhuma cifra durante toda a gravação, nenhuma partitura. Ensaiamos, ele decorou as músicas na cabeça e ia fazendo. Alzira é compositora extremamente inventiva, os discos dela são lindos, os arranjos são muito legais. Eu o apresentei para Alzira, assim como o apresentei a Itamar Assumpção.” Pedro acrescenta sutilmente bandolim, baixo e violino em algumas faixas.
DESEJOS
A vontade de Zélia de gravar um álbum dedicado a Alzira E era antiga, assim como trabalhar com Pedro Franco. O novo disco é a oportunidade de realizar os dois desejos de uma vez só. Minha voz fica faz parte do projeto Joia ao vivo, criado por Marcio Debellian e DJ Zé Pedro, com patrocínio da Oi e apoio cultural do Oi Futuro.
A gravação foi feita no estúdio Lab Oi Futuro, ao vivo, com Zélia e Pedro juntos. “Ou seja, 1, 2, 3 gravando, olho no olho, tirar a máscara só para cantar. Gravamos as 12 músicas em três dias”, conta ela.
A produção leva a assinatura de Ana Costa, com quem Zélia havia dividido o protagonismo no disco Eu sou mulher, eu sou feliz (2019), em que as duas aparecem como compositoras. “Falo isso para todo mundo mais jovem do que eu: as melhores pessoas para estar com você profissionalmente são as que gostam de você”, observa.
Minha voz fica havia sido adiado. Zélia achou até que não aconteceria mais. De repente, ficou sabendo que gravaria em novembro do ano passado. Na época, estava envolvida em outro álbum, feito em dupla com o pernambucano Juliano Holanda, com quem compôs intensamente durante a quarentena. No entanto, Minha voz fica acabou abrindo as celebrações dos 40 anos de carreira da artista fluminense.
Autoral, o trabalho com Juliano Holanda está em fase de mixagem e deve ser lançado em junho. Estão previstos ainda o lançamento do clipe em 3D de Medusa, do disco Tudo é um (2019), e de um livro escrito por ela. “Não é ficção, não posso falar muito, tem a ver com música. É um sonho meu e estou prestes a realizá-lo”, antecipa.