Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Pandemia e 'lives' provocam revolução nos bastidores do teatro

Realizado essencialmente por meio do encontro presencial do artista com o público, o teatro é uma das atividades culturais mais prejudicadas pela pandemia. A capacidade de reinvenção de diretoras, diretores, atores e atrizes vem sendo colocada à prova em busca de uma nova maneira de estar em cena, longe da plateia. Porém, a migração dos palcos para a internet, realizada em diferentes formatos, se deve especialmente ao esforço de quem não costuma aparecer. 





Nesta segunda-feira, às 20h, o canal do Piccolo Teatro Meneio no YouTube transmite a peça A obscena senhora H – Paixão e obra de Hilda Hilst, que aborda o relacionamento da escritora Hilda Hilst com seu primo Wilson, suscitando reflexões sobre a opressão e o machismo. Mais um espetáculo que o público poderá acompanhar de casa, pela tela do computador ou do celular, em transmissão ao vivo.

Recursos tecnológicos são essenciais para transformar em palco a casa de atores, como a de Teuda Bara, do Grupo Galpão (foto: Rodrigo Marcal/divulgação)


ESSENCIAL 


Além da dramaturgia de Juarez Guimarães Dias e da atuação de Luciana Veloso, vencedora do Prêmio Cenym de Teatro Nacional 2020 por seu trabalho, outros profissionais têm participação fundamental nessa montagem. Um deles é Bruno Cerezoli, responsável pela iluminação, som e vídeo, esse último parte essencial da peça.


Com longa carreira dedicada à área técnica nas artes cênicas, Cerezoli vive um momento totalmente novo desde que a pandemia começou. Ele fundou o Piccolo Teatro Meneio em outubro de 2020, espaço voltado para transmissões digitais.





Coordenador técnico-cultural no Centro Cultural Unimed-BH Minas, Bruno Cerezoli revela que já nos primeiros meses de pandemia identificou a urgência de adequar o teatro ao meio virtual. “Nos últimos 15 anos, trabalhei em muitos lugares, entre eles o Galpão e o espaço cultural do Minas Tênis Clube. Na verdade, o Piccolo nasceu em abril. Tínhamos uma palestra no Centro Cultural do Minas voltada para o backstage do teatro e fizemos on-line, por causa da pandemia. Percebi que dali para a frente seria tudo on-line”, relembra.

Cerezoli se valeu dos equipamentos de iluminação e som que já possuía para montar o novo espaço, com palco de 5mx4m, no Bairro Ouro Preto, em Belo Horizonte. Ali, realizou 65 espetáculos transmitidos ao vivo, muitos deles impulsionados pela Lei Aldir Blanc, criada para amparar artistas durante a pandemia.


O teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas (ligado ao Minas Tênis Clube) e o Teatro Feluma, em BH, são exemplos de casas que adequaram sua estrutura para otimizar transmissões on-line, informa Cerezoli. Isso passa pela requalificação dos profissionais da área, que vivem agora um imenso desafio.





“Os técnicos devem entender que a imagem não é só para o olho humano, mas para o olho humano e a câmara. A luz é totalmente diferente. A luz e o som, agora, passaram a ser para diversos dispositivos”, explica.

Este período de mudanças trouxe sérias dificuldades para trabalhadores do setor artístico. “Muita gente ficou sem emprego. Quem tinha conhecimento mais interdisciplinar, de informática, vídeo e luz, conseguiu se recolocar. O mercado da live veio para ficar. De agora em diante, todo espetáculo de teatro terá filmagem”, garante Cerezoli, reforçando a necessidade de retreinar os profissionais.

“Um problema muito grande no isolamento foram as equipes reduzidas. Com isso, várias atividades ficam concentradas numa única pessoa. Dependendo da live, a equipe muito pequena pode significar o insucesso da transmissão”, adverte. “Se você tirar o som da mesa e jogar para a plateia, entra pouco na transmissão. Então, pode ser necessário um terceiro técnico para fazer o som exclusivo para a internet. Muita gente tem gravado, editado e transmitido depois, porque live exige esses cuidados”, exemplifica.





Bruno cita a importância de movimentos como o Salve a Graxa, criado para arrecadar doações para técnicos em dificuldade devido ao cancelamento de espetáculos. Mas reforça: a categoria precisa se aprimorar. “Quem não se adaptar será engolido. O conhecimento é necessário. É preciso pesquisar, aprender, fazer oficinas on-line. Não dá mais para ficar preso ao analógico, porque o mundo já é digital e ficará ainda mais – e não só no teatro.” Futuramente, ele vislumbra a possibilidade de projeção de hologramas com tecnologia 5G. “O teatro on-line terá ainda mais recursos”, afirma.

O processo de evolução é constante. A obscena senhora H – Paixão e obra de Hilda Hilst, por exemplo, já chegou à terceira edição on-line. Cerezoli diz que as mudanças são nítidas a cada execução, e isso envolve a relação mútua de confiança entre artistas e técnicos.

“Nos palcos, temos uma oração de técnicos e atores que diz: ‘minha mão na sua, a sua na minha, para que juntos possamos fazer o que não podemos fazer sozinhos'. No on-line, a integração é ainda mais necessária. Se no teatro tradicional muitas emergências podem acontecer, na live há muito mais problemas”, alega. Bruno diz ter checklist de 50 itens para averiguar antes de iniciar cada transmissão. “Numa live, são vários pequenos detalhes que precisam funcionar ao mesmo tempo e corretamente.”





Iluminador do Grupo Galpão e colaborador de outras companhias, Rodrigo Marçal também vivencia esse novo momento na profissão. “Para muitos de nós da área, foi uma novidade. Tenho o privilégio de ter conhecimento anterior em tecnologia da informação e de saber mexer com os programas, mas não é essa a realidade dos técnicos de teatro. É um outro tipo de tecnologia, adaptar isso para a realidade da tela é desafiador”, comenta.

“É preciso entender que o olho da câmera não enxerga da mesma forma que o olho humano”, observa o iluminador. No início, foi difícil se adaptar. “Nosso desejo é sempre uma composição bonita nos dois espaços, mas entendi que deveria abrir mão disso em certos momentos. É um outro jeito de enxergar a luz.”

Live da peça O rei leão transmitida do palco do Centro Cultural Unimed-BH Minas (foto: Bruno Cerezoli/divulgação)


VARIEDADE 

Ao longo da pandemia, o teatro brasileiro ofereceu ao público de peças filmadas em grandes palcos, cumprindo o protocolo sanitário, a produções domésticas, com cada ator gravando cenas de sua própria casa. Marçal diz que esse formato é outro desafio.





Histórias do confinamento, exibido pelo Galpão em 2020, seguiu o modelo a distância. “Fiz o desenho de luz, mas não estava com os atores na hora da cena. Foi muito curioso criar luz para um trabalho em que eu não estava ali com eles orientando, como estamos acostumados. Os atores faziam a cena com o celular. Em alguns casos, havia deslocamentos dentro da casa. Tínhamos de testar a internet antes para saber se teria sinal em todos os cantos da casa”, conta Marçal.

Foi preciso levar em conta até o horário em que o espetáculo iria ao ar, por causa da iluminação natural específica de cada residência. “No teatro, isso é controlável, nas casas, não. Teatro em casa às vezes parece mais simples, mas tudo isso o torna mais complicado”, diz. “Não é teatro, mas também não é cinema.”

Marçal entende que o risco, que torna o teatro tão encantador, se mantém nas exibições on-line ao vivo. E destaca o intercâmbio com os artistas. “Em alguns casos, é preciso o ator abrir e fechar a própria câmera e áudio. É interessante eles vivenciarem um pouco do trabalho técnico, que tem riscos específicos”, observa.

Rodrigo Marçal se preocupa com colegas durante a pandemia, sobretudo aqueles que não se adaptaram às novas formas e trabalho.

“O universo da internet e das plataformas digitais não é algo que todos absorveram com facilidade. É um processo difícil, muitos amigos estão em dificuldades”, diz. Ele e outros profissionais da área criaram o Coletivo Multicabo, cujas ações visam proteger a categoria neste momento tão complicado.




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