Relatos do mundo é o segundo filme estrelado por Tom Hanks que, em decorrência da pandemia da COVID-19, foi lançado diretamente no streaming. Ainda no início do isolamento social, a Apple%2b lançou o esquecível Greyhound: Na mira do inimigo. Já o longa dirigido por Paul Greengrass, cuja distribuição internacional foi negociada pela Universal Pictures com a Netflix, bem merecia a tela grande (nos EUA, teve lançamento reduzido nos cinemas).
Recém-chegado à plataforma e já entre os títulos mais assistidos, é essencialmente um drama travestido de western. É cinema imponente, clássico, com uma história de redenção em meio a longos planos do árido Oeste norte-americano. O filme configura um ponto fora da curva na trajetória de Greengrass, cineasta conhecido pela câmera nervosa (dos ótimos Voo United 93 e 22 de julho) e ação incessante (trilogia Bourne). Foi adaptado do romance homônimo (inédito no Brasil), da escritora Paulette Jiles.
ATRIZ
Tom Hanks é Tom Hanks, não diferente do brilhante Capitão Phillips, do filme homônimo do mesmo cineasta. Ainda que seja ele o chamariz (e não sem razão), todos os olhos têm que ficar atentos mesmo à atriz Helena Zengel. É pela alemã de 12 anos que nos afligimos e por quem torcemos nas duas horas do filme. E sua interpretação visceral não precisa de muitas palavras para dar conta do peso da personagem.
Aqui, um parêntese. Indicada ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante (Relatos do mundo também concorre por trilha sonora), Helena estreou no cinema alemão aos 8. Conseguiu o papel no filme de Greengrass depois de viver Benni, uma criança que tem explosões brutais de violência por causa de abusos sofridos na primeira infância. Exibido fugazmente nos cinemas brasileiros no fim de 2020, Transtorno explosivo está disponível para aluguel e venda nas plataformas de streaming.
Quem assistiu ao longa da cineasta Nora Fingscheidt vai certamente encontrar pontos em comum entre Benni e Johanna, a coprotagonista de Relatos do mundo. O cenário são os EUA pós Guerra Civil (1861-1865). O capitão Jefferson Kyle Kidd (Hanks), veterano de guerra que se recusa a voltar para casa, leva uma existência nômade, indo de lugarejo em lugarejo para ler histórias publicadas nos jornais, que ganham vida em suas interpretações.
Ainda forte em suas convicções, é um homem machucado e sem grandes ilusões. Encontra na estrada uma garota perdida. Johanna (Zengel) é uma menina de lugar nenhum. Filha de imigrantes alemães massacrados pelo povo kiowa, cresceu entre os nativos. Quando a tribo que ela reconhecia como sua foi também dizimada, a menina, que só fala kiowa, se tornou hostil ao mundo. Ao encontrá-la, o capitão Kidd decide devolver Johanna, contra a vontade dela, aos tios biológicos.
A dupla improvável vai percorrer uma região sem lei, ainda dividida pela guerra e pela recente abolição dos escravos. Mesmo que o cenário seja de um século e meio atrás, Relatos do mundo dialoga com o momento atual. No Oeste polarizado, a narrativa levanta o debate para a imigração, para a perseguição às minorias e para o abuso contra as mulheres. E com um protagonista que usa as notícias para revelar às pessoas o que está acontecendo no país, o filme também destaca o valor do jornalismo.
As notícias que ele lê tanto podem ser desalentadoras, como um surto de meningite que matou várias pessoas, ou alvissareiras, como a abertura de uma nova linha de trem. Ao contar histórias dos outros, Kidd evita ter que se confrontar com a sua própria – e o reencontro do personagem com seu passado, na parte final, é comovente.
Mais importante, Kidd diz, é construir novas memórias, algo urgente para Johanna, que teve a infância roubada duas vezes. Por meio de uma estrada acidentada, os dois personagens procuram, entre curvas e declives, encontrar uma linha reta para refazer suas vidas. É sentimental, nunca piegas.
RELATOS DO MUNDO
O filme de Paul Greengrass está disponível na Netflix