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Estado de Minas LIVRO

Situação dos privilegiados no Brasil é como no Antigo Regime, diz Giannetti

Em entrevista sobre seu livro 'O anel de Giges', economista comenta a polarização política brasileira e os resultados da Operação Lava-Jato


15/02/2021 04:00 - atualizado 15/02/2021 09:30

(foto: Lailson Santos/divulgação)
(foto: Lailson Santos/divulgação)
 Ética é o tema central do mais recente livro do economista Eduardo GiannettiO anel de Giges. Nele, o autor conta como diferentes correntes de pensamento abordam as respostas do homem para a certeza da impunidade.
“Embora esse livro não fale do Brasil, ele parte de uma experiência de um cidadão brasileiro que percebe como a ética é talvez o fulcro maior das nossas dificuldades”, diz o economista.

Giannetti não trata de brasileiros nem de uma sociedade específica, mas, questionado sobre os padrões éticos locais e atuais, afirma que o país está no século 18, vivendo o Antigo Regime, aquele mundo pré-Revolução Francesa em que uma classe de pessoas poderosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis.

O autor acreditava que esse cenário pudesse mudar com a Operação Lava-Jato, mas diz que o país acabou retrocedendo nos últimos anos. 

“A Lava-Jato não teve sequência, não mudou as práticas políticas. Não construímos um regime  que torne muito mais onerosa e custosa uma prática corrupta.”

O livro parte da fábula de Giges (relatada em República, de Platão), em que um camponês encontra um anel que lhe dá o poder da invisibilidade. Sem censuras sociais e podendo violar a lei sem ser punido, ele seduz a rainha, mata o rei e se apossa do trono.

Giannetti questiona o que cada um de nós faria no lugar de Giges. Seríamos o “Giges-sem-lei”, isto é, um Giges que age como “a fera da ambição desmedida”? Ou o “Giges-cristão”, que se abstém de usar o anel por ser livre de tentações? O autor admite que o brasileiro pode ser um “Giges-sem-lei afetuoso”, mais passional e menos calculista. Confira a seguir a entrevista com o escritor.

No livro, o senhor afirma que ética e virtude não são mais frágeis do que desonestidade e má-fé. Isso é válido para todas as sociedades? Às vezes é difícil acreditar nisso quando vivemos momentos trágicos como o atual e vemos pessoas e governantes tirando vantagem sem nem mesmo precisar de um anel de Giges.
Esse livro não é referido a um contexto histórico. A palavra Brasil nem sequer ocorre no livro inteiro. Estou tentando pensar elementos universais da psicologia moral dos seres humanos. Aquela corrente do Giges-sem-lei, que começa com o Gláucon (irmão mais velho de Platão, que conta a história de Giges), em República, passa na filosofia moderna, entre outros, por Hobbes e Rousseau e reaparece na obra do Freud, toma a parte pelo todo

Ela se foca muito nos elementos antissociais da psicologia humana: agressividade, sexualidade abusiva, desejo de tirar proveito sem nenhuma preocupação com o outro. Ela não leva em conta que o ser humano tem um princípio de sociabilidade muito profundo. Nós buscamos construir vínculos densos de afetividade com pessoas que importam para nós. Isso foi completamente subestimado.

O Giges-sem-lei, que trata os outros de forma puramente instrumental e calculista, termina solitário. Criando um deserto à sua volta. Ele está permanentemente em uma postura de manipulador. Procuro mostrar que essa concepção de felicidade é limitada. Ela não dá conta dos anseios constitutivos do ser humano.

Adam Smith e David Hume colocam um contraponto. Hume fala de uma pessoa que tem todos os poderes do universo, mas, enquanto não tiver uma pessoa com quem possa compartilhar isso de maneira sincera e espontânea, é o mais miserável dos homens. Adam Smith diz que o maior charlatão tem algum princípio na sua constituição psicológica que o leva a ter algum grau de empatia com os demais. (O homem) Não é totalmente isolado dos sentimentos morais da comunidade.

Por outro lado, o senhor também coloca críticas ao Giges de Platão e ao Giges-cristão.
Eles colocam demandas sobre-humanas para que alcancemos um ideal de perfeição ética completamente irreal, dada a nossa psicologia moral e dado o nosso psiquismo arcaico, herdado do ambiente evolucionário. Assim como nosso corpo é uma relíquia de tempos ancestrais, ele foi moldado ao longo de um processo evolutivo de centenas de milhares de anos, algo semelhante ocorre em relação à psiquê humana. Ela foi moldada ao longo de um processo evolutivo. Nós somos herdeiros de um psiquismo arcaico, que não escolhemos ter. Essas duas correntes filosóficas e Kant também ignoram por completo o psiquismo arcaico do qual nós somos herdeiros, independentemente da nossa vontade. São partes constitutivas do nosso ser. Não são visíveis a olho nu, como é o nosso corpo, mas pertencem a nós e são parte da nossa interioridade. Muitas das pulsões antissociais que temos são fruto dessa herança evolutiva.
 
Apesar de o livro não tratar de uma sociedade específica, é possível relacioná-lo ao Brasil?
Tem dois vínculos que dá para fazer entre os temas do livro e a realidade brasileira. O primeiro é que o Brasil ainda parece ser um país que vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-Revolução Francesa em que uma classe de pessoas ricas, poderosas e famosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis que regem a vida em sociedade. A palavra privilégio, a etimologia dela vem daí. Privilégio é uma lei privada que não se aplica a todos. Muitas autoridades e pessoas poderosas acreditam que sua condição lhes dá o privilégio de praticar impunemente ações que agridem os direitos dos demais. Tem tantos exemplos de foro privilegiado, de supersalários, autoridades que afrontam a polícia, que abusam de todas as prerrogativas para exercer seus desmandos.

Vou ler um trecho de um romance do Marquês de Sade que cito no livro. O Marquês de Sade está descrevendo o que era o mundo do Antigo Regime francês e coloca na boca de um de seus personagens, Verneuil, a presunção de quase irrestrita impunidade da elite aristocrática, dos ricos, poderosos e famosos daquela época. Ele diz: “É impossível que as leis sejam igualmente aplicáveis a todos os homens. Esses remédios morais não são diferentes dos remédios físicos: não nos riríamos de um curandeiro que, possuindo apenas um remédio para todos os fregueses, tratasse um estivador da mesma forma que a uma solteirona frívola? Claro que sim! As leis são feitas somente para gente comum, os que necessitam de restrições e que nada têm a ver com o homem poderoso, a quem elas não dizem respeito. Em qualquer governo, o essencial é que o povo jamais invada a autoridade dos poderosos.” 

Isso é a presunção de impunidade e a condição de privilégio da elite do Antigo Regime. Acredito que o Brasil ainda vive isso em grande medida. Boa parte da nossa elite acredita que a lei é para os outros, para o povão. Aproveita qualquer situação para abusar da condição de privilégio que tem.

O livro traz um experimento de impunidade real, em que foram analisados diplomatas que podiam estacionar em locais proibidos em Nova York sem ser multados. O senhor não cita como os brasileiros se comportaram, mas, pelo experimento, eles tiveram, em média, 29,9 infrações por diplomata e ficaram na 29ª posição no ranking dos mais corruptos, entre 146 nacionalidades. O senhor afirma que a adesão às normas, mesmo quando se tem impunidade, depende da existência de uma rede de crenças morais compartilhadas pelas pessoas. Isso significa que no Brasil haveria um menor compartilhamento?
Outro tema que liga (o livro) com o Brasil é um fenômeno que chamei de “paradoxo do brasileiro”. Cada brasileiro, individualmente, acredita ser muito distinto de tudo o que vê ao seu redor. Ele vê um mundo de corrupção, de abuso de autoridade, de desmandos, de incompetência. Mas todos nós nos achamos, de alguma maneira, diferentes e superiores a tudo isso. No entanto, todos nós juntos somos exatamente tudo isso que aí está. É um paradoxo. Temos um ponto cego em relação a nós mesmos e olho de lince em relação às falhas dos demais. 

Posso te dar depoimento como professor do que vi, por 30 anos, em sala de aula, mas tem mil outras situações. Os alunos vão às ruas, protestam contra corrupção, exigem ética na política, querem mudar o modo como se governa o Brasil. Têm de fazer isso mesmo. Essa indignação é o que pode mudar as coisas. No entanto, esses mesmos alunos, quando termina o ano e vou dar a prova, começam a colar e não percebem que as duas coisas são incompatíveis. Você não pode estar um dia na rua pedindo ética na política e, quando chega o momento de dar o exemplo mais comezinho de comportamento ético, pisa na bola. Quem começa colando na faculdade daqui a pouco está roubando no Congresso, fraudando orçamento. Eu não me excluo desse paradoxo. Sou parte dele. 

Mas isso não significa que compartilhamos menos uma rede de crenças morais.
Aí é uma coisa delicada. Tem um filósofo inglês do século 18, Joseph Butlin, que tem uma colocação que não está no livro, mas vai muito nessa pergunta. Ele questiona o seguinte: qual é o padrão de moral vigente em uma sociedade?. Ele fala: se você quer saber qual é o padrão das crenças compartilhadas em um determinado agrupamento humano, basta observar o que estão todos se esforçando em parecer que são: honestos, competentes, cumpridores do dever, atenciosos. 

O hipócrita e o corrupto sabem melhor do que ninguém quais são as crenças morais compartilhadas socialmente, mesmo que não as pratiquem. A prova disso é que eles são hipercuidadosos quando se trata de ocultá-las e de não se traírem aos olhos dos demais. Isso é a demonstração de que eles sabem e compartilham, embora não pratiquem. 

Os brasileiros sabem o que é certo e o que é errado. Por isso, os hipócritas e corruptos se dão tanto ao trabalho de ocultar as práticas que cometem. A Lava-Jato foi um exemplo monumental disso. Quantos de nós no Brasil poderíamos supor que, ao longo de tantos anos, a Petrobras tinha se tornado o que ela mostrou ter se tornado? Foi preciso um trabalho de investigação para que aquilo aflorasse. As pessoas que estavam ocultando sabiam perfeitamente quão errado era aquilo. 

Acho que uma característica histórica e de origem da formação social e cultural brasileira é o individualismo exacerbado. As pessoas pensam em si e nas suas famílias. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. É um fenômeno chamado familismo amoral. É desse individualismo anárquico que resulta nossa dificuldade em ter instituições, em ter comportamentos que nos permitam nos reconhecer como coletividade. 

Não é um problema original do Brasil. Sólon, legislador e poeta ateniense, responsável pela primeira Constituição democrática do Ocidente, tem um verso que se encaixa como uma luva para a experiência brasileira. Ele está falando dos atenienses no século 6 a.C.: “Cada um de vós em separado tem a alma astuta da raposa, mas, todos juntos, sois como um tolo de cabeça oca”.

Isso significa que, no Brasil, o Giges-sem-lei tem uma certa predominância?
Há uma sensação de impunidade por parte de um contingente fundamental da sociedade, principalmente na elite. Ao mesmo tempo, há uma outra característica da cultura brasileira que é a cordialidade, no sentido em que o Sérgio Buarque de Holanda definia, que não é ser afetuoso ou bonzinho. É a prevalência das emoções e dos impulsos no comportamento acima de qualquer consideração sobre regras impessoais e sobre princípios universais. Isso não é bem o Giges-sem-lei. O Giges-sem-lei é um manipulador, um calculista, uma pessoa muito ciosa de uma certa racionalidade instrumental, que procura o benefício individual sem se importar com as leis e com o direito alheio. O brasileiro é um Giges-sem-lei afetuoso, passional.

O senhor citou a Lava-Jato, talvez tenha sido a primeira vez em que os brasileiros viram ricos e poderosos sendo condenados. Antes, era como se eles fossem impunes, usassem o anel de Giges. Como vê o pós-operação?
Retrocedemos na política e na Justiça. Fui muito esperançoso em relação à Lava-Jato como divisor de águas, como foi a redemocratização e o Plano Real. Infelizmente, não foi o caso. Não teve sequência, não construímos um regime que torne muito mais onerosa e custosa a prática corrupta. Há um abafamento e até retrocesso em relação às punições. A coisa foi se perdendo ao longo do caminho e ficou muito mais complicada por conta da eleição de 2018 e toda a polarização raivosa que tomou conta da política brasileira. Vejo que ondas de insatisfação vêm se sucedendo na vida brasileira, de junho de 2013 ao impeachment da Dilma, chegando à eleição do Bolsonaro. Será que essas ondas terminaram? Tendo a crer que não. Creio que elas estão nos levando a uma situação de ruptura. 

O ANEL DE GIGES

.De Eduardo Giannetti
.Cia. das Letras 
.(320 págs.)
.R$ 55,92 (livro) 
.R$ 39,90 (e-book)


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