Jornal Estado de Minas

LITERATURA

"Política é invenção", defende o escritor e crítico Silviano Santiago

Era uma vez um menino que descobriu o mundo por meio dos gibis. Era uma vez um homem que, obrigado a se confinar, dedicou-se a escrever um livro sobre o ato de escrever. Menino e homem se encontram esta semana. Um momento feliz, apesar das adversidades destes tempos, na trajetória do escritor, ensaísta e crítico literário mineiro Silviano Santiago. Aos 84 anos, três dias depois tomar a primeira dose da vacina contra a COVID-19, ele estreia em lives. Que vêm em formato duplo.





Nesta quinta-feira (18/2), Santiago promove uma live-aula sobre Graciliano Ramos e Machado de Assis, temas de “Fisiologia da composição” (Cepe Editora), escrito ao longo de 2020. Na sexta (19/2), ele fala sobre o recém-lançado “Menino sem passado” (Companhia das Letras), o primeiro dos três volumes de suas memórias. Os dois encontros virtuais terão mediação do editor e crítico literário Schneider Carpeggiani.

Nascido em Formiga, no Centro-Oeste de Minas Gerais, Santiago tomou emprestado o título de um poema de Murilo Mendes para dar conta de seus primeiros 12 anos. “Menino sem passado (1936-1948)” acompanha as marcas que a infância e a família deixam em todos nós a partir da trajetória de um garoto que perdeu a mãe com 1 ano e meio, teve relação conturbada com o pai e descobriu, ainda bem jovem, o cinema e as histórias em quadrinhos.

O projeto memorialístico vem sendo preparado por Santiago nos últimos anos. O próximo volume, sobre a vida em Belo Horizonte, onde viveu até 1960, quando radicou-se no Rio de Janeiro, já deveria ter sido iniciado. Pequenos problemas de saúde adiaram o começo do volume, que dará sequência ao terceiro livro, sobre as viagens do autor ao exterior.





Já “Fisiologia da composição”, escrito “por necessidade e desejo”, coloca o confinamento, a solidão e a privação da liberdade decorrentes da pandemia sob o ponto de vista da literatura de Machado de Assis e Graciliano Ramos.

“Aos 84 anos, não se vive impunemente. Ou você passa pelo confessionário ou pelo consultório. Por sorte, passei pelo consultório”, afirma Silviano Santiago nesta entrevista ao Estado de Minas.


Não houvesse a pandemia não haveria “Fisiologia da composição”?
Acho que sim. O livro é consequência, obviamente, de alguma coisa a que estou acostumado: o confinamento pelo amor à literatura e o desejo de ser escritor e ser leitor. Por ter 84 anos e ser do grupo de risco, o confinamento tornou-se obrigatório para mim. O curioso é que o livro é uma mistura pouco comum: desejo com necessidade. Em geral, funciona apenas o desejo ou, ainda de maneira mais forte, a necessidade. O livro traz essa mistura também para preservar minha sanidade mental, com um trabalho que me agrada. Em geral, meus ensaios são mais curtos. Como neste tinha tempo de sobra, pude fazer um livro bastante reflexivo.







Compor é diferente de escrever?
Completamente. Composição é um vocábulo muito mais amplo do que o mero hábito de escrever. Acredito que a composição é um tema pouco trabalhado pela crítica brasileira. Para estudar composição, você precisa ficar na entrada do túnel da criação. Para fazer análise, você fica ao final do túnel da criação. (No livro) Peço ao leitor para ficar na entrada, ver como uma obra é composta. Nesse sentido, o livro escapa da crítica literária tradicional, que em geral analisa a obra escrita, não se interessa pela composição. É um livro que julgo mais interessante para aqueles que queiram fazer literatura, pois não é sobre o prazer da leitura, mas sobre o modo como uma obra de arte é composta. Aí entra o tema que foi capital na pandemia: a questão da liberdade.

De que maneira essa composição ocorre?
Falando sobre o Guignard, por exemplo. Se no lugar de analisar as obras dele você ficasse frequentando o ateliê dele, observando como ele compunha um quadro. Machado de Assis é um autor que no meio de “Memórias póstumas de Brás Cubas” escreveu o capítulo “O senão do livro”. Como, se há um senão, ele não o deixou de escrever. Então, reflito sobre o que poderia ser o senão.

Outro escritor analisado em seu livro, Graciliano Ramos escreve que liberdade completa ninguém desfruta, que o ser humano pode se mexer dentro de limites. 
Qualquer forma de arte tem limitações formais. No nosso caso (da literatura), você não pode escrever qualquer palavra, ou então ninguém vai entender. Então há essa repressão violenta do dicionário de um lado, e do outro a gramática. Graciliano tem isso de forma muito consciente: a forma, para ele, é uma prisão. Por isso estou conversando sobre quem quer ser escritor, pois não acredito que com a folha de papel na frente você pode fazer o que quiser. A chamada forma – que, obviamente, a crítica sociológica tende a minimizar, querendo analisar apenas a matéria – tem um lado importante no livro. Se você é apenas um leitor, não precisa saber que tem que ter personagem, narrador. Mas se quer ser escritor, essas figuras de retórica são importantes. Se você escolhe escrever em primeira pessoa, o narrador e o personagem são iguais. Se escolhe na terceira, tem um narrador e um personagem. Ou seja, tudo isso vai te aprisionando e você, dentro da forma prisão, tem que inventar a sua liberdade.





As atividades do crítico literário e do escritor “brigam” de vez em quando?
O escritor tem a maneira de simplificar e acredita que o importante é só a vida vivida. Acho que desde o início, por ter perdido a mãe com 1 ano e meio e ter me dedicado aos gibis, me dei conta de que a vida vivida não é suficiente. Você vai construindo cada dia sem saber como andar no dia seguinte. Existe outra coisa, que é muito importante e não deve ser desprezada, que é a vida aprendida que alguém – um escritor, um artista – te dá de presente. Não existe grande escritor sem uma vida aprendida, só que isso passa a ser também uma forma de prisão. Uma coisa fascinante e ao mesmo tempo terrível é a tradição. Você tem que vencer a força da tradição para inventar algo muito próprio. A tradição e a invenção trabalham juntas em um processo de grande solidão. Pois a partir de determinado momento, você está sozinho consigo mesmo.


Na sua opinião, como anda a produção literária no Brasil?
Pessoalmente, acredito que momentos políticos muito desastrosos como o atual são péssimos para a literatura porque obrigam você a recorrer a frases feitas, slogans. A contundência não traz ambiguidade de significados, então não acho que estamos em um momento muito feliz para a literatura. E aí entramos em outra questão complicada. Política, para mim, e se estou falando de democracia, é invenção. O brasileiro tem a obrigação, neste momento, de inventar uma linguagem para poder argumentar a favor da democracia. Se ele ficar usando a linguagem como mero reflexo da linguagem do dominante, fica uma troca de slogans. E literatura não se faz com lugares comuns.


De que maneira a literatura foi afetada pela literatura?
É uma coisa bem interessante num país como o Brasil, em que desde o início temos insistido na palavra solidão. O Brasil tende a ser sociável e gregário, então essa solidão que existe de maneira natural nas pessoas introvertidas se tornou uma necessidade para o cidadão comum. Se você perceber, as pessoas estão lendo mais, inclusive mais livros. Por mais paradoxal que possa parecer, o hábito da leitura surge da pandemia e, no caso do Brasil, num país que não tem esse hábito. Isso está sendo bastante positivo. Grandes clássicos, em geral catataus, estão sendo muito lidos. É uma pena que seja por obrigação. Preferia que fosse por desejo.






"FISIOLOGIA DA COMPOSIÇÃO"
. De Silviano Santiago
. Cepe Editora
. 235 páginas
. R$ 60 (livro) e R$ 18 (e-book)
. Live de lançamento nesta quinta-feira (18/2), às 19h, no YouTube. O volume, autografado pelo autor, está à venda no site da Livraria Travessa por R$ 51


"MENINO SEM PASSADO"
. De Silviano Santiago
. Companhia das Letras
. 464 páginas
. R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)
. Live de lançamento na sexta-feira (19/2), às 19h30, em youtube.com/companhiadasletras