Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Tropicalista Capinan chega aos 80 defendendo a vida e a democracia

Autor de “Ponteio”, “Soy loco por ti, América”, “Gotham City”, Movimento dos barcos” e “Papel maché”, entre outros clássicos da MPB, o poeta e compositor José Carlos Capinan completa 80 anos nesta sexta-feira (19/2). A festa será uma live show, às 19h, do jeito que o baiano gosta: com arte, conversa e música. Estão confirmadas as presenças de Jards Macalé, Roberto Mendes e Gereba.





Os 80 anos são o começo de novas ideias, garante o aniversariante. “Criar é uma espécie de potência, um tesão pelo belo, divertida forma de entender a vida e de compreender o humano. A natureza do mundo, às vezes, é tão difícil que só pela arte se pode chegar perto de seu sentido”, afirma. “A vida, entendida em sua verdadeira dimensão, nos obriga a um gesto humilde de celebrá-la. Nada consegue reduzi-la, devemos nos render à sua grandeza e mistério celebrando, agradecendo e abraçando-a.”

Série revela enfrentamento à ditadura militar

A festa não termina nesta sexta-feira. No segundo semestre, estreia a minissérie “O silêncio que canta por liberdade”, na qual o baiano revela como enfrentou a ditadura militar (1964-1985). A direção é assinada por Úrsula Corona e por Omar Marzagão.

Oito episódios abordam o silenciamento imposto pelo governo militar aos artistas, sobretudo nordestinos. “Minha vida atravessa esse momento muito forte da música popular brasileira”, comenta o poeta. Em 1967, ele e Edu Lobo venceram o Festival da Record com “Ponteio”. No agitado 1968, Capinan e Gilberto Gil lançaram “Soy loco por ti, América”, interpretada por Caetano Veloso. A canção remete a Che Guevara, um dos maiores inimigos dos generais que comandavam o Brasil. Em 1969, com Jards Macalé, causou polêmica ao apresentar “Gotham City” no 4º FIC, o festival da Globo.





“Edu e Gil foram meus grandes parceiros na década de 1960”, pontua. O baiano participou do álbum histórico “Tropicalia ou Panis et Circenses”, marco do Tropicalismo, assinando “Miserere Nobis” com Gilberto Gil.

Em 1964, Capinan deixou a Bahia para morar em São Paulo e depois no Rio de Janeiro. Diferentemente de vários companheiros, ele não foi preso pela ditadura. “Felizmente, estive protegido pelos meus santos”, diz. “Vivíamos o medo, a insegurança, a perda da nossa origem. Muita coisa ameaçava o nosso equilíbrio psíquico e mental.”

Porém, o baiano não passou ileso pela repressão. “Recebi algumas ameaças e sofri um espancamento na Praia de Ipanema, no Rio, sob a alegação de que havia dado maconha para uma menina. Papo furado, pois não houve nada daquilo”, conta.





Quando Caetano e Gil se exilaram em Londres, Capinan deu prosseguimento ao tropicalismo ao lado de Gal Costa e Jards Macalé, irritando os militares com a ousadia de seu comportamento, além das canções que driblavam a censura.

Em “Gotham City”, por exemplo, nem censores nem o público do Festival Internacional da Canção perceberam a ironia da linguagem. “Pensaram que estávamos falando do Batman”, comenta Capinan. “Outro fato curioso aconteceu com Jorge Benjor. 'Charles, anjo 45' também passou, embora a letra enaltecesse um traficante do morro. Muitos acreditam que a censura não percebeu do que as duas letras tratavam. Por isso as canções passaram e foram classificadas.”

O poeta é parceiro de muita gente: Geraldo Azevedo, Paulinho da Viola, Fagner, Tom Zé, Francis Hime, Moraes Moreira, Robertinho do Recife, Gereba, Zé Ramalho, Mirabô Dantas, Suely Costa, Joyce e o mineiro João Bosco, com quem compôs a romântica “Papel machê”.





Nos anos 1980, uma letra dele foi censurada: “Monte de Vênus”, canção gravada por Marcelo Nova e a banda Camisa de Vênus. “A hipocrisia não gosta de ouvir sobre sexo, talvez tenha sido esse o motivo”, especula.

Ouça "Gotham City":


Em defesa da democracia 

Décadas após o fim do regime militar, o poeta baiano sai em defesa da democracia, “que sofreu um baque inesperado atualmente”, segundo ele. “Vamos apostar nela. Estão aí uma porção de coisas com tanta falta de vergonha que não pensávamos em ver mais”, diz, referindo-se ao racismo e à campanha contra a ciência na contramão do combate à pandemia.

“É uma loucura, são os tempos, mas dá para vencer a luta pela democracia. Estão vendendo as riquezas brasileiras, o petróleo, refinarias, aeroportos. Esse negócio aí do capital financeiro é algo muito brabo”, adverte.





Diretor-geral de “O silêncio que canta por liberdade”, Omar Marzagão conta que a série resgata a memória cultural do país sob o olhar nordestino. “A perseguição (durante a ditadura militar) ocorreu em nível nacional, mas a história de muitos artistas que ficaram no Nordeste nunca foi contada”, observa.

“Quem saiu do Nordeste teve êxito na carreira. Quem ficou, infelizmente, teve sua arte maltratada, como é o caso de alguns artistas. É isso que a gente vem devolver a eles. A história desta arte merece ser respeitada e conhecida pelo grande público”, afirma a diretora Úrsula Corona.

Resgate da trajetória musical

Omar lembra que o Brasil conhece bem a trajetórias de nordestinos como Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros artistas que se mudaram para o Sudeste. “Mas muitos continuaram com suas carreiras no Nordeste, foram até mesmo influentes na carreira de Gil e Caetano. Resgatando a memória de grandes artistas que o grande público desconhece, nossa ideia é tornar nacional o que é regional”, reforça o diretor.





Os episódios abordam o trabalho de artistas da Bahia, Pernambuco, Ceará e da Paraíba, além do “DNA musical” do Nordeste de Gonzagão e Jackson do Pandeiro. Há relatos inéditos de Gilberto Gil, Moraes Moreira, Chico César, Gal Costa, Alceu Valença, Ednardo, Otto, Fausto Nilo e Cacá Diegues.

“Capinan contribui não só para a história da música, como revela uma curiosidade sobre a polêmica sobre o nascimento do samba, disputa que envolve Bahia e Rio de Janeiro. Ele garante que o samba nasceu no porão dos navios”, conclui Úrsula Corona.

LIVE-SHOW

Homenagem a José Carlos Capinan. Nesta sexta-feira (19/2), às 19h, no perfil do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) no YouTube. Acompanhe ao vivo: 



(foto: Oliver Perroy/Rubens Gerchman)

REVOLUÇÃO

Gilberto Gil (C) segura o retrato de Capinan na capa de “Tropicalia ou Panis et circenses”, o disco-manifesto que revolucionou a MPB, lançado em 1968

PARCEIROS

GILBERTO GIL
“Soy loco por ti, América”
“Miserere Nobis”
“Ladainha”
“Água de meninos”
“Aboio”

CAETANO VELOSO
“Clarice”

EDU LOBO
“Ponteio”
“Cirandeiro”
“Corrida de jangada”
“Canto de despedida”
“Rosinha”
“Limite das águas”
“Repente”

JARDS MACALÉ
“Gotham City”
“Farinha do desprezo”
“Movimento dos barcos”
“78 rotações”

PAULINHO DA VIOLA
“Canção para Maria”
“Prisma luminoso”
“Mais que a lei da gravidade”
“Coração imprudente”
“Orgulho”

JOÃO BOSCO
“Papel machê”
“Imã dos ais”
“Pirata azul”




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