Os gols foram muitos. No total, 1.282 em 1.363 jogos. As aparições cinematográficas, também. Mais de 10, como ator, personagem ou tema de documentário. Mas, aparentemente, isso ainda não foi suficiente para contemplar toda a grandeza da história do maior jogador de futebol de todos os tempos.
Na próxima terça-feira (23/02), a Netflix lança “Pelé”, novo documentário sobre o Rei. Se filmes anteriores já mostraram os lances e as conquistas do craque, desta vez a narrativa perpassa a relação entre seu hegemônico reinado no gramados e o frágil regime democrático brasileiro.
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Se o final foi feliz para a Seleção Brasileira, aquele início era extremamente conturbado para o time, para o país e para o ídolo maior da nação. No primeiro depoimento para a produção, Pelé confessa o peso da responsabilidade que sentia na época.
Assista ao trailer:
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Desacreditado na Copa do Mundo de 1970
O maior jogador da história começa então a explicar de que modo, aos 30 anos, ele chegou desacreditado àquela que seria a sua última Copa e mais preocupado com a perspectiva do fim de sua carreira do que em ganhar a taça.
Com 80 completados em outubro passado, Pelé entra em cena amparado por um andador, senta-se em uma sala vazia e viaja no tempo, relembrando sua trajetória.
Algumas histórias batidas são resgatadas, como o início da carreira e a motivação em virar jogador ao ver o pai, Dondinho, chorar pela derrota brasileira na final da Copa de 1950, em pleno Maracanã. Porém, logo o contexto se amplia.
Se em “Pelé eterno”, lançado em 2004, a direção de Aníbal Massaini Neto e o roteiro de José Roberto Torero se preocuparam em destrinchar a magia futebolística do craque, até recriando graficamente um gol antológico nunca filmado, a nova produção traz a curiosidade estrangeira sobre o Brasil em que Pelé surgiu. Ou melhor, o Brasil que ele fez surgir.
Assinam a direção os britânicos Ben Nicholas e David Tryhorn, que já trabalharam juntos em outros documentários sobre atletas, como “Crossing the line” (2016), a respeito da dramática história do velocista norte-americano Danny Harris.
O craque além do campo
A produção de “Pelé” é do escocês Kevin Macdonald, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2000 com “One day in september”, sobre o Massacre de Munique, no qual integrantes da equipe de Israel foram alvo de ataque terrorista do grupo Setembro Negro durante os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique.
Com essa experiência de mostrar o esporte além do campo de jogo, os documentaristas conectam a história de um Pelé ainda garoto, recém-chegado a Santos, onde se formaria atleta, nos anos 1950, com a de um país também muito jovem e ainda irrelevante mundialmente.
Ainda aos 17, Pelé decide a final da Copa de 1958 a favor do Brasil, na Suécia. Na mesma época, o Brasil se modernizava e entrava nos anos 1960 sob grande otimismo nacional, embalado pelo sucesso esportivo trazido pelo futebol, que venceria outra Copa, em 1962.
As cenas trazem imagens impressionantes da época, com o resgate de filmagens feitas na Suécia, em 1958, e também no Brasil. A produção ainda buscou registros do passado em vários outros países por onde Pelé jogou. Até a cinemateca do Cairo, no Egito, serviu de fonte.
Trajetória de orgulho
A trajetória mundialmente vitoriosa de Pelé com o Santos, nos anos 1960, é documentada com cenas deleitosas para quem ama futebol e depoimentos de ex-companheiros. Até um encontro recente de Pelé com eles, em um churrasco, é registrado. Mas a ideia principal é dar a dimensão do que o ainda jovem jogador passou a representar no imaginário nacional, sendo um homem negro, globalmente reverenciado.
Para isso são convidados a dar seu depoimento especialistas em futebol, como os jornalistas Juca Kfouri, José Trajano e Paulo César Vasconcelos. Mas também falam o músico e ex-ministro Gilberto Gil, a deputada federal e ex-ministra Benedita da Silva e o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, ampliando a compreensão política, social e cultural do que Pelé representava naquela época, quando o país passou a ter um sentimento de orgulho nacional diante das outras nações, vendo o crescente interesse internacional pelo que se passava aqui.
Promovido a superastro, Pelé começa a dominar a publicidade, a mídia e sua vida pessoal também vira obsessão do imaginário popular. Pela cronologia mostrada no filme, é quando ele cai em certo ostracismo futebolístico. Nessa mesma época, a euforia otimista vivida no Brasil é abruptamente interrompida pelo golpe militar de 1964, que deu lugar à violenta ditadura.
Em 1966, a seleção vai para a Inglaterra com a missão de conquistar o tricampeonato mundial, com todas as esperanças depositadas sobre Pelé. Paralelamente, com a projeção internacional de que desfrutavam, o atleta era pressionado a se posicionar sobre os horrores que ocorriam na política do país. Porém, isso nunca foi de seu feitio, como atestam depoentes do filme, como o ex-jogador Paulo Cézar Caju, que reforça sua crítica à neutralidade do Rei.
Mostrando que, na mesma época, o boxeador Muhammad Ali se notabilizou por enfrentar o governo dos EUA, recusando-se a servir ao exército do país na Guerra do Vietnã e ainda fazendo campanha contra o combate, o documentário questiona Pelé pessoalmente sobre seu comportamento durante a ditadura, e ele dá suas explicações sobre o tema.
O jogador fala abertamente se o regime interferia ou não na atividade futebolística e ainda revela como lidava com as informações sobre os crimes cometidos pela ditadura, como torturas, sequestros e assassinatos.
“Em meados dos anos 60, o mundo começou a mudar, e você começou a ver figuras como Muhammad Ali realmente desafiando o establishment. Pelé, a essa altura, não sabia muito bem como se adaptar a esse mundo”, disse Ben Nichols, um dos diretores, ao portal inglês “iNews”.
NEUTRALIDADE
Em seus comentários sobre a produção, David Tryhorn, que já morou no Brasil, diz que, “se você perguntar a qualquer brasileiro, a principal crítica contra ele (Pelé) tende a ser sua neutralidade: uma postura ligeiramente apolítica ou apática. Era importante pressioná-lo: deveria ele ter feito mais? Poderia ter feito mais?", afirma o diretor. Na visão dele, “o Brasil antes de Pelé e o Brasil depois de Pelé são dois países totalmente diferentes em termos de identidade cultural e nacional”.O filme inclui cenas da violência praticada nas ruas pelo governo militar e destaca a instauração do AI-5, em 1968, trazendo o ex-ministro Antônio Delfim Netto, um dos signatários do Ato, hoje com 92 anos, como um dos entrevistados. Nessa convulsão, a Seleção Brasileira, que vinha do fracasso em 1966, se prepara para uma nova Copa, desta vez amplamente utilizada como propaganda nacionalista pela ditadura.
Pelé, que no ano anterior ao mundial do México marcara seu milésimo gol, estava no centro disso tudo. Ele tentava se equilibrar entre a própria desesperança de performar bem após o último fracasso, a crise política que sacou o treinador João Saldanha do cargo meses antes da Copa, em virtude de uma declaração do técnico que desagradou o governo, e a opressão política no país.
Tudo isso é escancarado em imagens e depoimentos, alguns de certa forma contraditórios por parte de Pelé, sobre seu entendimento em relação à ditadura. Contudo, a redenção do jogador com seu futebol magistral nas seis vitórias brasileiras na Copa de 70 é detalhada com toda a riqueza visual de seus lances, dribles, gols e “não-gols” espetaculares.
O próprio Rei vai às lágrimas, no alto de seus 80 anos, ao falar sobre o significado daquele momento com o qual conquistou a coroa futebolística, que até hoje ninguém conseguiu herdar.
RETRATOS DO REI
Confira outros documentários sobre o craque
» 1962 - “O Rei Pelé” (Carlos Hugo Christensen)
» 1974 - “Isto é Pelé” (Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto)
» 2004 - “Pelé eterno” (Anibal Massaini Neto)
» 2018 - “O último show de Pelé” (Emanuela Audisio e Matteo Patrono)