A repercussão da série 'Cidade invisível', da Netflix, tem levado muita gente a se perguntar o que é ou não invenção sobre as personagens inspiradas no folclore brasileiro. É fato de que há muitas licenças poéticas na produção criada por Carlos Saldanha, mas o folclore, por seu lado, é um terreno fértil para recriações.
“É sempre infindável, pois cada lugar tem uma variação”, comenta o jornalista e pesquisador sul-mato-grossense Andriolli Costa, que em seu pós-doutorado na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) estuda a relação do folclore e dos jogos analógicos. Ele é ainda criador do blog Colecionador de Sacis, que há três anos conta com uma versão em podcast.
Também jornalista e pesquisador, o mineiro Carlos Felipe, autor de “O grande livro do folclore” (2002), entre dezenas de outros, concorda. “O lendário brasileiro é enorme, provavelmente o maior do mundo. Como nós temos origem indígena, negra e portuguesa, e nosso território é tão vasto, isso fornece lendas com imagens diferentes em cada parte do Brasil”, comenta ele, que contabiliza pelo menos 200 lendas em todo o país.
Com roupagem de thriller policial, a série acompanha um detetive da polícia ambiental do Rio de Janeiro que, após a morte da mulher em uma floresta em chamas e da descoberta de um boto cor-de-rosa morto na praia, começa uma investigação. No processo, vai se deparar com personagens com forma humana que, na verdade, são entidades.
“A série foi bem-sucedida, principalmente pela questão visual e por ter mostrado para o público que nunca pensou que tais histórias poderiam ser contadas pelo meio audiovisual. Mas o recorte do Rio de Janeiro é claro. Muito provavelmente o mercado vai aquecer e buscar histórias como essas, então ‘Cidade invisível’ provavelmente não será a única (produção do gênero). Há muito mais para explorar”, acrescenta Andriolli.
A seguir, os dois especialistas em folclore nos ajudam a entender de onde vem o lendário repaginado pela série:
>> Iara
Mito dos mais antigos do lendário brasileiro, nasceu como um monstro marinho feroz. “Essa forma encantadora só vai aparecer por influência do romantismo, em que os poetas sonhavam com sereias”, diz Andriolli Costa. Carlos Felipe se lembra de que a morte do bandeirante Fernão Dias, no final do século 17, tem relação com a lenda.
“Ele morreu de uma febre em Minas Gerais em uma lagoa. Segunda a lenda, quem matou Fernão Dias não foi a doença, mas a Iara, pois ele a teria ofendido ao entrar no território dela procurando esmeraldas, que seriam seus cabelos.”
Protetora da fauna das águas, ela vai ganhando diferentes nomes e formas. No Centro-Oeste, é o espírito Mãe d’Água; nas religiões afro-brasileiras, é Iemanjá. “A cada leitura, há um acréscimo do mito”, continua Carlos Felipe. Na lenda, a pessoa não pode ouvir o canto da Iara se estiver sozinha, pois, atraída por ele, irá para o fundo do mar e lá morrerá. “Muita gente gravou músicas falando da Iara, como Inezita Barroso e Delora Bueno, mas não existe o canto da Iara”, acrescenta Felipe.
“Ele morreu de uma febre em Minas Gerais em uma lagoa. Segunda a lenda, quem matou Fernão Dias não foi a doença, mas a Iara, pois ele a teria ofendido ao entrar no território dela procurando esmeraldas, que seriam seus cabelos.”
Protetora da fauna das águas, ela vai ganhando diferentes nomes e formas. No Centro-Oeste, é o espírito Mãe d’Água; nas religiões afro-brasileiras, é Iemanjá. “A cada leitura, há um acréscimo do mito”, continua Carlos Felipe. Na lenda, a pessoa não pode ouvir o canto da Iara se estiver sozinha, pois, atraída por ele, irá para o fundo do mar e lá morrerá. “Muita gente gravou músicas falando da Iara, como Inezita Barroso e Delora Bueno, mas não existe o canto da Iara”, acrescenta Felipe.
Na série: interpretada por Jéssica Córes, que vive a cantora Camila
>> Saci
Mais popular dos personagens folclóricos brasileiros, mistura elementos das culturas indígena e africana. “É sempre arriscado falar em origem, mas, entre aspas, podemos dizer que ele vem do Sul do país, o duende Jaci Jaterê, dos povos guaranis, que acabaram reivindicando que o Saci era deles”, afirma Andriolli Costa.
De acordo com o pesquisador, o Saci, como o conhecemos hoje, teve uma mistura do imaginário africano – “com a cor e (falta de) uma perna” – com o europeu. “A carapuça que ele usa é típica dos duendes portugueses.”
Para Carlos Felipe, além da mistura étnica, o Saci chama a atenção pelo lado da malandragem. “Você tem que ajudar, dar um cigarro, para que ele não mexa com você.”
De acordo com o pesquisador, o Saci, como o conhecemos hoje, teve uma mistura do imaginário africano – “com a cor e (falta de) uma perna” – com o europeu. “A carapuça que ele usa é típica dos duendes portugueses.”
Para Carlos Felipe, além da mistura étnica, o Saci chama a atenção pelo lado da malandragem. “Você tem que ajudar, dar um cigarro, para que ele não mexa com você.”
Na série: interpretado por Wesley Guimarães, que vive o jovem Isac, ele pouco saltita, já que utiliza uma perna mecânica
>> Curupira
Um dos personagens folclóricos mais antigos do Brasil vem da mitologia indígena, já que sua origem é anterior à chegada dos portugueses. Ser protetor das matas, é citado em carta de 1560 pelo padre José de Anchieta.
“E naquele registro, ele não tinha os pés para trás”, comenta Andriolli Costa. Diante disso, ao longo dos séculos, o espírito protetor que batia naqueles que colocavam a floresta em risco foi ganhando diferentes versões. Na série, é muito explorado o fogo, que toma o lugar de seus cabelos.
“E naquele registro, ele não tinha os pés para trás”, comenta Andriolli Costa. Diante disso, ao longo dos séculos, o espírito protetor que batia naqueles que colocavam a floresta em risco foi ganhando diferentes versões. Na série, é muito explorado o fogo, que toma o lugar de seus cabelos.
Na série: interpretado por Fábio Lago, que vive Iberê, um morador de rua
>> Cuca
A Cuca na figura de um jacaré que a maioria das pessoas conhece vem da criação de Monteiro Lobato. Ela só apareceu no livro “O saci” (1921), como uma personagem secundária que transformava Narizinho em pedra.
No folclore, ela é um bicho-papão presente nas cantigas de ninar, sem aparência precisa. A versão da série a misturou com a mitologia das bruxas, em que a sétima filha mulher se transforma em animais, que podem ser aranha, borboleta (como em “Cidade invisível”), gato ou mariposa.
No folclore, ela é um bicho-papão presente nas cantigas de ninar, sem aparência precisa. A versão da série a misturou com a mitologia das bruxas, em que a sétima filha mulher se transforma em animais, que podem ser aranha, borboleta (como em “Cidade invisível”), gato ou mariposa.
Na série: interpretada por Alessandra Negrini, que vive Inês, dona de um bar
>> Boto-cor-de-rosa
É um ser encantado das águas que tem forte poder de sedução. Sua forma remete à do golfinho, que na mitologia grega era um animal de muita sexualidade. “Muitos indígenas lembram que a crença nos botos é antiga. Mas o boto capaz de se transformar em homem e seduzir mulheres vem do século 18”, explica Andriolli Costa. De acordo com o pesquisador, essa versão surge na época da colonização, com a imagem do ser que engravida uma mulher e logo depois a abandona.
Na série: interpretado por Victor Sparapane, é apresentado na forma do humano Manaus
>> Tutu
Ele é basicamente um papão como a Cuca, e costuma ficar em cima do telhado pronto para comer a criança. É frequente das cantigas de ninar, que são entoadas pelos pais justamente para que ele não pegue a criança. A suposição mais forte, diz Andriolli Costa, é de que o nome derive da língua africana quinbundo. Tutu seria uma derivação de quitutu (ou kitutu), que em quinbundo significa comer. Daí surgiu o nosso quitute. Dependendo do lugar, a lenda, originária da África, tem vários “sobrenomes”. Pode ser Tutu Marambá, Tutu Zambê ou Bicho Tutu.
Na série: interpretado por Jimmy London, Tutu é o braço direito de Inês
Maldades de corpo seco
O corpo seco é uma lenda presente em “Cidade invisível”, ainda que na série ele não tenha um personagem. O mito, popular no Sul e Sudeste, fala de uma pessoa que cometeu tantas maldades em vida que seu corpo foi rejeitado pela terra ao morrer.
Como não consegue ser enterrado, não vai para o céu nem para o inferno e retorna como uma espécie de zumbi. Há basicamente dois tipos de corpos secos: aquele que se locomove como um zumbi e aquele que não consegue se mover, então depende da carona de humanos para chegar aos lugares.
Para escapar desse caroneiro nada bem-vindo, há algumas ações possíveis, como passar uma porteira ou cruzar um riacho.
Como não consegue ser enterrado, não vai para o céu nem para o inferno e retorna como uma espécie de zumbi. Há basicamente dois tipos de corpos secos: aquele que se locomove como um zumbi e aquele que não consegue se mover, então depende da carona de humanos para chegar aos lugares.
Para escapar desse caroneiro nada bem-vindo, há algumas ações possíveis, como passar uma porteira ou cruzar um riacho.