Antes de entrar na casa do Big Brother Brasil, a psicóloga baiana Lumena Aleluia era conhecida por sua militância antirracista, mas agora está sendo acusada de fazer no programa da Globo justamente o que combatia fora dele.
Lumena, que é negra, criticava outra participante, Carla Diaz, uma atriz branca, quando disse: "Não gosto dessa coisa sem melanina, desbotada".
Isso "foi um caso claro de racismo" para o deputado estadual Anderson Moraes (PSL-RJ).
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Ele disse ter feito uma denúncia contra Lumena na delegacia especializada em crimes raciais do Rio de Janeiro, cidade onde o Big Brother é gravado. Para o deputado, a declaração foi "pejorativa e ofensiva à raça branca".
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Agressiva contra adversários no 'BBB', Karol Conká dispara em rejeiçãoBBB21: Psiquiatra comenta a 'tortura psicológica' no realityBBB 21: 'Esquerda criou palco, ganhou espelho e não gostou do que viu', diz filósofo sobre o realityLumena disse que a atriz tinha um ego muito grande e estava "cagada na merda da branquitude".
"Gente, em que mundo estamos vivendo? Cagada na branquitude? Se fosse o inverso seria crime", tuitou Faria.
Por causa do mesmo episódio, o vereador Thammy Miranda (PL-SP) denunciou a participante do Big Brother ao Ministério Público do Rio de Janeiro.
Ele argumentou que, ao falar da "branquitude" de Carla, Lumena fez referência a "um comportamento que seria típico de pessoas da raça branca" e que seria "considerado inferior" por ela.
O vereador afirmou ainda que ela fez um "perigoso incitamento a comportamentos agressivos e humilhantes em relação a pessoas de raças diferentes". "Racismo é racismo", disse.
O MP-RJ informou à BBC News Brasil ter recebido 17 denúncias em sua ouvidoria contra a psicóloga, que estão sendo analisadas, mas não especificou se alguma foi por racismo.
Lumena foi racista com Carla ao criticar sua "branquitude"? Afinal, uma pessoa negra pode ser racista contra uma pessoa branca?
O que é racismo
O racismo tem uma longa história, mas o conceito é relativamente recente. Foi elaborado no século 20 para identificar uma ideologia que divide e hierarquiza uma sociedade com base nas características étnicas e raciais.
"A construção do racismo refere-se a grupos em posição de poder que subjugam outros grupos para obtenção de vantagens e privilégios a partir dessa subordinação", diz Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e coordenadora o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap).
O preconceito é a visão de mundo que deriva dessa ideologia. Mas o preconceito não necessariamente se concretiza em atos. Se isso acontece, há uma discriminação.
A lei 7716 foi criada em 1989 no Brasil para combater justamente a discriminação baseada no preconceito de raça ou cor de pele — ela foi depois alterada para incluir outros tipos de preconceito.
Essa lei criminaliza uma série de atos discriminatórios, como barrar alguém de entrar em um restaurante, negar o atendimento em uma loja ou impedir uma matrícula escolar, por exemplo.
Também prevê que condutas mais gerais configuram racismo quando elas "praticam, induzem ou incitam a discriminação ou preconceito".
Mas o crime de racismo não se refere a todo e qualquer gesto de preconceito racial, explica o advogado Thiago Amparo, professor de Direitos Humanos da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP).
"Racismo tem a ver com relações de poder. Não é simplesmente uma ofensa, mas uma ofensa que reproduz relações de poder na sociedade que são baseadas na raça e na cor", afirma Amparo.
'O racismo tem cor e destinatários certos'
O advogado recorda que o Supremo Tribunal Federal já disse em outras ocasiões que a raça não existe do ponto de vista biológico.
É uma elaboração criada para hierarquizar as pessoas em uma sociedade. Inferioriza algumas enquanto torna outras superiores.
"Isso não pode ser lido fora das nossas relações atuais de poder e do contexto histórico do Brasil", diz Amparo.
Falar que racismo independe de raça desconsidera que houve 300 anos de escravidão no Brasil e que, historicamente, brancos nunca foram discriminados, defende o advogado: "O racismo tem, sim, cor e destinatário certos".
Márcia Lima concorda: "Como o racismo envolve relações de poder, não faz sentido dizer que alguém de um grupo dominante foi discriminado por uma pessoa de um grupo subordinado".
A socióloga acrescenta que também não é tão simples fazer uma inversão de papéis no que vem acontecendo no Big Brother.
Uma fala semelhante da Carla para a Lumena tem mais impacto pelo fato de Lumena ser de um grupo historicamente discriminado, diz Márcia Lima.
"São duas mulheres que ocupam lugares históricos na sociedade brasileira que não são iguais ou equivalentes. Não dá pra apenas supor uma inversão. É muito mais complexo. Tem um lastro social e histórico para uma fala assim ser considerada racista."
Thiago Amparo diz que o próprio fato de algumas pessoas fazerem essa troca de papéis para acusar Lumena de ter sido racista depõe contra esse argumento.
"Não precisaria fazer essa inversão se as situações fossem iguais. Racismo reverso não existe."
Os dois pesquisadores lembram ainda que atitudes como a de Lumena, embora bastante criticáveis, podem ser fruto da própria discriminação que uma pessoa como ela sofreu ao longo da sua vida em uma sociedade na qual o preconceito racial é estrutural, institucional e cotidiano.
Algo que é duplamente válido para uma mulher preta, que teve de lidar ao mesmo tempo com o racismo e o machismo. Para se defender, ela teria partido para o ataque.
'Falas como a de Lumena prestam um desserviço à luta antirracista'
Isso não quer dizer que Lumena não possa vir a ser cobrada na Justiça por suas atitudes — nem que seu preconceito não seja condenável.
"Não configurar um crime de racismo não significa que não haja outras vias jurídicas possíveis", explica Thiago Amparo.
"Para isso, no entanto, o Judiciário teria que verificar se se trata de um caso de indenização por dano moral ou um caso de injúria simples. Nas duas hipóteses, deveria ser argumentado que a ofensa foi significativa a ponto de ser responsabilizada, o que é controverso dada as relações raciais de poder."
Mas talvez a cobrança mais forte pode vir de quem Lumena menos espera quando ela sair da casa do Big Brother.
"O discurso da Lumena não representa movimento nenhum", tuitou a vereadora Erika Hilton (PSOL-SP), que é negra.
"Tanta luta ainda pra mulher negra num país desse. Um governo desse. Aí vem uma criatura e gasta nosso discurso, gasta a nossa vela com um defunto ruim desse", disse a cantora Teresa Cristina.
As falas de Lumena são preconceituosas, diz a socióloga Márcia Lima, e ferem o princípio básico do antirracismo: não se trata de atacar pessoas brancas, mas sim combater o uso de características étnico-raciais para diferenciar, desqualificar ou preterir qualquer um.
"Tudo isso é uma infelicidade que desqualifica e não representa a militância negra. Falas como esta prestam um desserviço à luta antirracista."
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