Jornal Estado de Minas

LIVRO

Biografia de Guignard conta os sucessos do artista e os dramas do homem

A introdução de “Balões, vida e tempo de Guignard” (Autêntica), biografia de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) escrita pelo jornalista e pesquisador João Perdigão, chama a atenção por dois aspectos. O autor se coloca na narrativa, ao contar de que maneira ouviu pela primeira vez, aos 9 anos, falarem o nome de um tal “Guinhar”. 





Foi assim que a criança que ele era entendeu o sobrenome que iria se tornar quase um substantivo do modernismo, sobretudo em Minas Gerais. Na sequência, Perdigão ressalta o fato de Guignard ser também um dos maiores alvos de falsificações no país.

Cento e vinte e cinco anos desde seu nascimento – completados nesta quinta-feira (25/2) – em Nova Friburgo, na serra fluminense, e 59 desde sua morte, em Belo Horizonte, Guignard segue como uma unanimidade (termo utilizado por Frederico Morais no texto “O humanismo lírico de Guignard”) entre os mestres modernistas, e sendo considerado o autor de obra mais comovente, também citando o crítico mineiro.

O desenho 'Carnaval na Praça Onze' foi originalmente publicado na edição de fevereiro/março de 1941 da revista Sombra (foto: Autêntica Editora/Reprodução)

ACESSÍVEL

A despeito da importância de sua obra e de seu legado como professor, Guignard não tinha, até então, uma biografia de caráter jornalístico. “O que existe de mais denso são livros de Frederico Morais (1974), que foram a base de tudo que veio depois, do Carlos Zilio (1983) e da Lélia Coelho Frota (1997). Mas todos são livros de artista, livrões. O que procurei fazer foi um livro com uma linguagem mais acessível, para explicar para o leigo quem é Guignard”, comenta Perdigão.




A exemplo do que ocorreu com o autor na infância, não são poucos, principalmente entre aqueles que nasceram ou vivem em Minas, os que em algum momento da vida se depararam, surpreendidos, com Guignard. 

“Balões, vida e tempo de Guignard”, que consumiu cinco anos de pesquisa de Perdigão, ainda traz ricas colaborações de pessoas que conviveram com o pintor. Já na folha de rosto estão elencados os entrevistados, entre eles a colecionadora Priscila Freire, amiga de Guignard e proprietária de vários quadros do pintor – acervo doado para a Universidade do Estado de Minas Gerais  (Uemg), e suas ex-alunas Yara Tupynambá e Célia Laborne. 

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Esta última foi da primeira turma de alunos do curso livre de desenho e pintura na Escola de Belas Artes que ele criou, a convite de Juscelino Kubitschek, nos porões de um Palácio das Artes em obras, em 1944. 

“Tentei, mas não encontrei ninguém que tenha convivido com ele no Rio de Janeiro. O que me deu alento para a pesquisa foi a Biblioteca Nacional, que traz muita coisa inédita”, comenta o autor. A narrativa de Perdigão segue os moldes de uma biografia tradicional, acompanhando seu personagem desde a infância até a morte. 





Com 'As gêmeas', em que retratou as irmãs Léa e Maura em 1940, o pintor venceu o Salão de Belas Artes daquele ano (foto: Autêntica Editora/Reprodução)

GLOSSÁRIO

Mas o pesquisador não se atém à figura de Guignard. Ele extrapola a trajetória individual, ligando o artista a seus pares e também aos movimentos da época. Complementando a leitura, há, na parte inicial, um glossário dos movimentos artísticos citados na obra e, na final, outro glossário que elenca 400 pessoas, com minibiografias de artistas, políticos e demais personagens que aparecem na narrativa.

Não faltaram dramas nos 66 anos de vida de Guignard. O lábio leporino nunca resolvido após sucessivas cirurgias e que lhe deixou com uma maneira estranha no falar foi o primeiro deles, que o acompanhou por toda a sua trajetória. A morte do pai na infância; a perda da mãe e da irmã, na juventude; o abandono pela mulher durante a lua de mel; o excesso de álcool; a falta de dinheiro, que o levou a pintar em troca de favores (casa e comida, na maioria das vezes). 

Mas também por causa disso tudo, Guignard teve uma trajetória incomum. Foi educado na Europa do início do século 20, vivendo entre Munique e Paris. Retornou ao Brasil em 1929, indo direto para o Rio de Janeiro. “Sempre se fala que chegou com uma mão na frente e outra atrás. Mas ele tinha um bem, e ninguém sabia do imóvel”, conta Perdigão.





HERANÇA

No livro, o autor comenta que Guignard penhorou ao jornalista Paulo Bittencourt um sobrado de três pavimentos na Rua do Lavradio, atual Lapa, única herança do pai. Pouco tempo depois, intimado na Justiça a pagar o que devia, perdeu o imóvel. “O Bittencourt era dono do Correio da Manhã, um dos jornais que mais escreveram sobre ele”, assinala Perdigão.

Outro achado do autor sobre esse período diz respeito à Mostra de Arte Social, organizada por Aníbal Machado em setembro de 1935, no Centro de Cultura Moderna do Rio de Janeiro. A mostra coletiva de cunho socialista da qual Guignard participou estava localizada na Avenida Rio Branco. 

Exatamente em frente ficava a Pro Arte, sociedade de intercâmbio cultural Brasil-Alemanha, na qual o artista também atuava. “Quando a exposição socialista aconteceu, a Pro Arte era acusada de ser um ninho de nazistas”, comenta Perdigão. Guignard frequentava os dois espaços.





FORA DO PADRÃO

“Este momento político dos anos 1930 tem muito a ver com o momento de agora. O Guignard não tinha um lado político, era amigo de quem gostava do trabalho dele. Era um cara preocupado com a arte. Não era uma pessoa normal, entre aspas. O fato de ele ter sido tutorado no fim da vida diz muito sobre a questão. Ele não era uma pessoa totalmente dentro do padrão.” Até uma experiência do artista com o LSD, já em seus últimos anos, é levantada por Perdigão em uma curiosidade apresentada em pé de página.

O lado artista gráfico também é abordado pelo autor, que encontrou alguns desenhos inéditos, publicados em revistas da época e “perdidos” no acervo da Biblioteca Nacional. Um dos destaques é o desenho “Carnaval na Praça Onze”, que saiu na edição de fevereiro/março de 1941 da revista Sombra, publicada entre as décadas de 1940 e 1960. Logo depois desse desenho, a praça foi demolida para dar lugar à Avenida Presidente Vargas.

Em 1942, o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York comprou, por US$ 250, o quadro “Noite de são-joão”. A título de comparação, seu “Vaso de flores” (1930) foi leiloado em 2015 por R$ 5,7 milhões, fazendo com que Guignard fosse o criador da tela mais cara de um artista brasileiro vendida em leilão no país. Em 2020, o recorde foi superado quando “A caipirinha” (1923), de Tarsila do Amaral, foi arrematado por R$ 57,5 milhões.





“Se no Rio dos anos 1940 ele era reconhecido como um grande pintor, quando chegou a Belo Horizonte era como se ele tivesse zerado. BH não tinha, naquele momento, uma cultura modernista”, diz Perdigão. Vale dizer que Guignard foi o quarto nome levantado por JK, então prefeito da capital mineira, para criar, em 1944, a Escola de Belas Artes – antes dele foram considerados Cândido Portinari, Tomás Santa Rosa e José Pancetti.

A vocação para o ensino é a principal marca de seus últimos 20 anos, passados entre Belo Horizonte e Ouro Preto. “Por ter muitas referências, Guignard flertou com vários tipos de fazeres da arte, transpondo muito o que seus contemporâneos fizeram. (Além da pintura), Fez fotocolagem, artes gráficas, capa de pôster. E fundou a primeira escola de arte modernista do Brasil. Recebeu pensão vitalícia do governo de Minas, foi como um monumento vivo, uma coisa sem precedente para a época”, observa Perdigão.  

“BALÕES, VIDA E TEMPO DE GUIGNARD”
• João Perdigão
• Autêntica (368 págs.)
• R$ 64,90 (livro) e R$ 45,90 (e-book)

Casa Guignard promove live

Em 11 de março próximo, às 19h, João Perdigão fará uma live de lançamento da biografia. O encontro virtual será transmitido pelas redes sociais do Museu Casa Guignard, como parte das comemorações de aniversário da instituição, em Ouro Preto. O museu, localizado em edificação histórica do século 19, reúne 415 peças, com desenhos, cartões, pinturas, objetos e documentos. Destacam-se o conjunto de 111 cartões (1932 a 1937) do álbum dedicado a Amalita Fontenele e 145 fotografias de Guignard em Ouro Preto, em registro no final de sua vida feito por Luís Alfredo Ferreira.




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