Lélia Gonzalez foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado no Brasil, pioneira em falar de feminismo negro, propôs uma mudança estrutural nos estudos do pensamento negro, foi militante política, acadêmica, escritora e deixou um arcabouço de textos e livros inevitáveis quando se quer compreender a extensão do racismo brasileiro.
Morta em 1994 e com boa parte de sua obra esgotada, Lélia acabou esquecida durante alguns anos, mas passa, agora, por um processo de recuperação que envolve a família e nomes-chave do movimento feminista negro brasileiro.
Fruto de uma parceria entre a família da autora e a ONG Nossa Causa, o projeto Lélia Gonzalez Vive é o primeiro passo para digitalizar e disponibilizar on-line a obra da pensadora. No final de 2020, o lançamento de “Por um feminismo afro-latino-americano”, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima, reuniu alguns dos textos emblemáticos de Lélia, assim como entrevistas concedidas ao longo de décadas e artigos publicados em periódicos.
Em 2015, a Fundação Banco do Brasil investiu no projeto Memórias da Lélia Gonzalez. “A partir desse momento, a gente percebeu que deu muita visibilidade ao pensamento dela, à obra dela, e as coisas vieram num crescendo”, conta Rubens Rufino, sobrinho que Lélia adotou como filho desde criança.
Para completar o lançamento do livro, realizado durante a Festa Literária das Periferias (Flup) do ano passado, o documentário “AmarElo”, de Emicida, inclui Lélia como uma das personalidades que mais influenciaram o músico. “Isso tomou uma proporção muito grande, e eu, meus filhos, netos e minha prima-irmã Eliane decidimos fazer alguma coisa. Hoje, a gente vê como missão continuar o legado dela”, explica Rufino.
Lélia Gonzalez nasceu em 1935, em Belo Horizonte, em uma família de 14 irmãos. Filha de um negro com uma mestiça indígena, foi a única da família a seguir com estudo superior e formou-se em história e geografia, em 1959, e em filosofia, em 1962, na então Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na década de 1970, foi professora da PUC/Rio e da Universidade Gama Filho e trouxe para o meio acadêmico uma nova forma de encarar a presença do negro nos estudos culturais brasileiros. Para Lélia, o negro não podia ser objeto analítico. Somente quando ocupasse o lugar de sujeito na pesquisa acadêmica é que poderia haver uma mudança estrutural no desenvolvimento do pensamento sobre a formação social do Brasil.
Ela também foi uma das primeiras a questionar o movimento feminista brasileiro sobre a ausência de um pensamento racial. Como acreditava que era preciso mudar as instituições por dentro, Lélia se candidatou a deputada federal e estadual nos anos 1980 pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Democrático Brasileiro (PDT), mas não chegou a ser eleita.
Foi na militância em várias frentes que o nome da pesquisadora tomou corpo. Nos anos 1970, ela integrou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, embrião do movimento antirracista carioca, e ajudou a criar o Movimento Negro Unificado, pioneiro na construção de uma luta antirracista de engajamento nacional.
VALORIZAÇÃO
Para Márcia Lima e Flavia Rios, esse conjunto de atuações tem relevância até hoje na constituição do feminismo negro brasileiro. “Este livro chega ao público brasileiro apenas no final da segunda década do século 21. Embora tardio, ele surge num momento muito peculiar do feminismo negro no país, quando está em curso um processo de valorização e reconhecimento da trajetória e da produção intelectual de ativistas negras brasileiras”, dizem as organizadoras da obra.
Flavia, pesquisadora do núcleo afro do Cebrape e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que Lélia é uma feminista da segunda onda, movimento de mulheres profissionais liberais, mais intelectualizadas e que, nas décadas de 1970 e 1980, tematizaram questões como a participação da mulher na política, a violência contra a mulher e os direitos reprodutivos.
“Um tema clássico que se associa ao pensamento dela é o feminismo negro, a preocupação com a realidade das mulheres negras e indígenas, com destaque para as mulheres da periferia”, explica a pesquisadora. “Ela era uma feminista crítica do feminismo, porque achava que as feministas, como ela, eram mulheres de classe média e que esse discurso de liberdade não alcançava as mulheres mais populares, da favela. O grau de analfabetismo era altíssimo, as mulheres tinham menos acesso à educação.”
A atuação política, Flávia aponta, também foi muito importante. Lélia participou da Constituinte, ajudou parlamentares a construírem o texto da Constituição de 1988 e foi uma das primeiras conselheiras a formar o Conselho Nacional da Mulher. No campo das ciências sociais, era uma crítica engajada da influência dominante do pensamento europeu na produção intelectual brasileira.
“As referências acadêmicas eram quase que totalmente europeias e pouco porosas ao debate dos escritores africanos. Então, ela tinha uma crítica ao eurocentrismo que, às vezes, as pessoas confundem como sendo uma negação do pensamento ocidental, mas não é isso. Tratava-se de pluralizar o debate intelectual global, olhar para outras realidades nacionais e continentais”, explica Flávia.
“Por um feminismo afro-latino-americano” vem para corrigir a ausência de Lélia no mercado editorial nos últimos 30 anos, mas ainda há um bom caminho pela frente, com publicações importantes como “Lugar de negro” (1982) e “Festas populares no Brasil” (1987), entre os esgotados e nunca mais editados.
Mesmo assim, o livro organizado por Márcia e Flavia será publicado em inglês e espanhol. “A gente está vivendo, nos últimos anos, no Brasil um crescimento grande do debate da questão racial, do feminismo negro. Isso foi algo que propiciou muito a visibilidade da obra da Lélia”, aponta Márcia Lima, que é professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Afro Cebrape.
“E quem manteve muito vivo o pensamento dela foi o movimento negro. Não foi a academia. Ela é uma referência importante não só no Brasil, mas na América Latina e mesmo nos Estados Unidos, onde já tem uma tradição do pensamento feminista negro.”
“Os viajantes”
l De Regina Porter
l Tradução: Juliana Cunha
l Companhia das Letras
(376 págs.)
l R$ 79,92
As histórias de uma família de imigrantes irlandeses e de descendentes de escravos se entrelaçam nesse romance, que narra uma saga que atravessa o tempo. Da luta pelos direitos civis nos anos 1960 à eleição de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos, a autora faz, também, um retrato de um país.
“Então você quer
conversar sobre raça”
l De Ijeoma Oluo
l Best Seller (318 págs.)
l R$ 49,90
Agraciada com o prêmio Humanist Feminist Award de 2017 e eleita uma das pessoas afro mais influentes do mundo pela revista The Root, Ijeoma Oluo parte da perspectiva de uma mulher negra para conversar sobre racismo, interseccionalidade, privilégio branco e ações afirmativas nesse pequeno livro pautado por perguntas como “O que são microagressões?” e “A violência policial realmente tem a ver com raça?”
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“Filosofias africanas”
l De Nei Lopes e Luiz Antonio Simas
l Civilização Brasileira
(144 págs.)
l R$ 34,90
Como avisam os autores na introdução, o objetivo desse livro é mostrar como o saber africano fundamenta um conjunto de práticas e ações que são anteriores à colonização e à ocupação de territórios por parte dos brancos. Como já haviam feito em “Dicionário da história social do samba”, vencedor do Jabuti de 2016, Lopes e Simas mergulham no pensamento africano como a base para compreender a cultura do continente.
“Leopardo negro,
lobo vermelho”
l De Marlon James
l Tradução: André Czarnobai
l Intrínseca (784 págs.)
l R$ 99,90
Um menino desaparecido, um caçador excepcional e uma África pré-colonial formam o cerne do novo romance de Marlon James. É em um mundo de fantasia e mágica, com bruxos, feiticeiras e ancestrais, que transitam os personagens de James nessa saga épica.