Ouro Preto – A quarentena não poderia ser mais produtiva, desafiadora e surpreendente para os mineiros Tiago Viana, trompetista da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (RJ), e Waldeci Luciano Ferreira, maestro da Banda Euterpe Cachoeirense, de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais.
Vasculhando os arquivos na sede da corporação, localizada no Centro do histórico distrito, os dois encontraram uma partitura datada de 1816; curiosamente, 40 anos mais velha do que a banda de música, nascida em 1856 e considerada uma das primeiras de Minas.
O mais importante se revelou logo no ato da descoberta do manuscrito, que traz a cor sépia do tempo e elevou o tom de entusiasmo da dupla. Em vez de uma peça musical sacra, fato muito comum em Ouro Preto, Tiago e Waldeci tinham nas mãos a partitura de uma abertura escrita para orquestra, certamente a mais antiga encontrada no distrito. Agora, os músicos têm novos caminhos a seguir: descobrir a autoria, investigar a procedência e revirar as pastas do arquivo em busca de partituras que complementem o achado.
"Seria emocionante ver essa obra apresentada por uma orquestra, em algum teatro", vislumbra Tiago, mestre em música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), residente na capital fluminense e, atualmente, entre idas e vindas, passando a quarentena na casa dos pais, em Cachoeira do Campo.
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No ritmo da empolgação, os músicos destacam a obra como de "significativa qualidade composicional". A orquestração, explica Tiago, é semelhante à usada por importantes compositores mineiros do período colonial, dispondo de violino, viola, contrabaixo, flauta, oboé, fagote e trompa.
"Acredita-se que exista também a partitura para violoncelo, mas infelizmente ainda não foi encontrada. Pode ser que seja a partitura mais antiga já encontrada em Cachoeira do Campo", contou o trompetista, ao mostrar o manuscrito à equipe do Estado de Minas.
No alto da partitura, bem conservada, está nítida a data (1816). Os músicos encontraram ainda as iniciais M J de C, apenas um monograma – uma espécie de assinatura com sobreposição de letras –, escrito no canto superior esquerdo de cada uma das páginas das partituras.
"Quem será o autor? Por qual motivo estas partituras se encontram no acervo da Euterpe? Onde foi escrita? Foi executada por alguma orquestra?", perguntam-se os músicos com a única certeza, por enquanto, de que muitos mistérios envolvem o manuscrito, e que serão necessárias perseverança e paciência diante da falta de informações claras.
Olhando a partitura com admiração, Tiago e Waldeci comentaram, inúmeras vezes, sobre a relevância da composição. "Falei assim: então, Curt Lange (alemão naturalizado uruguaio, 1903-1977) não descobriu tudo em Minas. Ainda ficou muito para ser encontrado, a exemplo dessa partitura do início do século 19", diz o trompetista.
Vale conhecer, portanto, o célebre musicólogo Francisco Curt Lange. Desde suas primeiras visitas a Minas, em 1944 e 1945, ele desenvolveu, conforme especialistas, um trabalho de campo sem precedentes, no qual localizou documentos e partes musicais manuscritas, produzidas por gerações de músicos cujas atividades remontam ao século 18.
Lange formou, a partir daí, uma coleção de fontes musicais manuscritas, que desde 1983 se encontra sob os cuidados do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Outra parte foi doada à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que criou em 1995 o Acervo Curt Lange.
Não é a primeira vez que trabalhos de pesquisa são feitos nos arquivos da Banda Euterpe Cachoeirense. Por meio de uma parceria firmada na década de 2000 entre a corporação e o Museu da Inconfidência, houve a catalogação e o lançamento do livro “Acervo de documentos musicais – Vol. 1”, referente aos manuscritos de música sacra pertencentes à Euterpe.
Segundo os dois músicos, o trabalho realizado foi, e ainda é, de grande relevância, permitindo a músicos e pesquisadores conhecer um pouco sobre o arquivo de partituras da corporação. Futuramente, adianta Tiago, existe a possibilidade da disponibilização do arquivo de partituras da Banda Euterpe para pesquisadores externos à instituição. "O acervo da banda é riquíssimo, dispõe de variado repertório. Muitas obras merecem cuidados e atenção devido à importância histórica que têm."
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O que é abertura de orquestra?
No que se refere à música orquestral, a abertura – uma forma de composição que tem sua origem no século 17 – era usada inicialmente como peça introdutória de obras dramáticas (óperas). Ao longo dos séculos, após várias transformações, passou a fazer parte de concertos, independentemente da função introdutória para a qual foi criada.
Conhecida também como overture (no idioma inglês), ou ouverture (no francês), ela é uma forma composicional que se desenvolveu na Europa, sendo utilizada por célebres compositores: Wolfgang Amadeus Mozart, Gioachino Rossini, Pyotr Llyich Tchaikovsky e muitos outros.
No Brasil, tal forma de composição também foi amplamente usada, principalmente no princípio do século 19. "Podemos citar algumas aberturas compostas no Brasil durante o período colonial: ‘Abertura em ré – Padre João de Deus de Castro Lobo’; e ‘Abertura em ré – Padre José Maurício Nunes Garcia’", informa o músico Tiago Viana.